26 de agosto de 2009

Countdown 3 - Caminhando sobre vulcões


Oiço gritos à minha volta. Refreio o instinto e silencio o grito involuntário que quase me sai da garganta. Ravinas e mais ravinas. Adivinho a queda dolorosa pelos penhascos de lava afiada e áspera. Antecipo o acidente. Agarro-me ao assento como se esse acto pueril me afastasse a vertigem. "Blonde Josefina, tu és a excelsa alimária que caiu do sótão de casa com vertigens. Porque te metes nestas coisas?" Afasto a vertigem. Combato-a porque quero viver a altitude destes vulcões. Foi por isso que aqui vim.
15 milhões de anos cristalizados num pedaço de rocha expelida do magma neste Atlântico. Um nada geológico. Primordial e jovem esta terra. As forças telúricas estão vivas e sentem-se. A terra ainda não se apaziguou à vida. Ainda não a suporta. Mas a vida invade-a inexoravelmente. Parafraseio o David Attenborough enquanto assisto, ao vivo e a cores, aos "desafios da Vida", aqui diante dos meus olhos que sorvem a paisagem com olhos de primeira vez. Abro os sentidos: o vento que é mais do que eu, é um vento que quer o espaço que é meu; o eterno odor de secura e rocha calcinada, as cores de óxidos gravadas nas pedras que a violência parturiente expeliu das entranhas profundas da terra. Caminho por dentro de leitos de rios de lava que esculpiram a fogo as encostas. Vejo a lava vítrea e imagino-lhe a incandescência quente de fluído telúrico primordial ejaculado. A terra em nascimento de dor. A paisagem tatuada a fogo cicatricial.
Toco o céu por entre o vento, o negro e o vermelho ígneo. Estou onde a vida nasce. Inspiro o sopro primeiro e vivífico. Estou pronta para descer.

24 de agosto de 2009

Countdown 5 - Primeiras impressões


A água está à distância de um braço. Lembro-me de que é o Oceano largo, o largo Oceano. Ocorre-me, num mínimo lapso de segundo, o pensamento de um Airbus despenhado. Nunca tal me ocorreu. Aterramos sobre a praia e acho que só por milagre não arrancámos a cabeça aos poucos banhistas que devem ter levantado voo com a sucção aérea do avião.
Da janela parecia-me estar em Marrocos mas isto é um pedaço de África alocado a um país da União Europeia. Por instantes é-me difícil reconciliar estas ideas disjuntas. Será que o Saramago pensa nelas quando aqui aterra? Na terra a que chama casa?

Ankunft. Gepäck. Nicht eintreten! Ausgang. A primeira língua é o alemão, constato com o espanto espantado de isto ser Espanha e os espanhóis serem férreos na protecção e disseminação do seu idioma. O inglês vem em segundo e no pódio de bronze o espanhol. "Nicht möglich!", penso ajeitando-me mentalmente à envolvente e dando tempo ao cérebro para perceber que sim, esta deve ser uma ilha tomada de assalto por hordas de pensionistas fugidos à inclemência climática das invernias alemãs. Hey, afinal eu também fugiria. Não: eu fugi e nem precisei da pensão!

Eu vinha em busca de um vulcão onde tocar o céu e terminar em transcendência estas férias mágicas. Mas há vulcões por todo o lado. Basalto, leitos de lava fria exangue. A terra é dura de tortura. Rugosa. Seca. Inerte. O meu desejo do deserto que amo e que me faz saudades de regresso eterno é aplacado. Inspiro a plenos pulmões o ar saturado do interior da Terra e do que ela se esventra. É primordial. É um cheiro ressequido, se é que ressequido é cheiro. Mas é, porque é a isso que me cheira nesta terra negra do fogo ardido.

Estou numa ilha de fogo. Um fogo extinto presente por todo lado. Fogo vivo afinal. O quarto elemento, simbolicamente dicotómico: ao mesmo tempo destruidor e purificador. Queima a Fénix e permite-lhe a regeneração. E eu? Eu estou a meio de um rito iniciático: destruo passados purificando novas fases.

Sim, é um bom sítio. O fogo circunscrito pela água cristalina e profunda do oceano largo. A água baptismal regeneradora. Gosto de símbolos. Fazem sentido, ou melhor, são sentido. E eu? Eu preciso de sentido.


Glossário:
Ankunft - Chegada(s)
Gepäck - Bagagens
Nicht eintreten! - Não passar!
Ausgang - Saída
Nicht möglich! - Não é possível!

22 de agosto de 2009

Just because I like him

Esta coisa de limpezas de escritórios tem muito que se lhe diga, como por exemplo que, na minha colecção duvidosa de cds, o nome com mais parafernália do que o George Michael é... exactamente: o senhor da voz de quatro oitavas que está a cantar e, tão ou mais apimbalhado do que o meu querido George Michael, o Michael Bolton (deve ser do Michael. Não, não, perdão, que o Pai também é Michael e de pimba não tem nada, alto lá Blonde Josefina!).
Gosto desta canção na voz da Cher e que o Bolton compôs originalmente para a Laura Branigan (sim, uma one-hit wonder desses saudosos 80s, a tal do "Self-Control"). Mas prefiro a versão do Michael Bolton que ontem ouvi à exaustão em mais um episódio de limpezas que parecem não ter fim.
Havia, de facto, muita limpeza a fazer, muito pó a sacudir, muita prateleira a arrumar, muito espaço a ganhar. Amanhã parto de novo. Desta vez para tocar o céu lá do alto do vulcão. Porém, sei, com a certeza absoluta da clarividência serena, de que nada será tão mágico como o que eu vivi no Alentejo do meu início promissor de Agosto. Descobertas e limpezas, eis o resumo das minhas férias. Com estas feitas, o que resta? A Vida. Ah, pois... a Vida. E eu gosto tanto da minha. Tanto.

19 de agosto de 2009

Limpezas

A purga continua.
Ando há três dias enfiada na biblioteca e no escritório cá de casa a ver se ponho, finalmente, alguma ordem em papéis, livros, pastas, prateleiras. Obra titânica. Já não se trata de expurgar o meu espaço de uma existência que por aqui andou sem saudades. Essa fase já está. Agora sou eu que me arrumo a mim própria para abrir um espaço limpo de inutilidades, redundâncias. Limpo até de mim.
Pergunto-me a cada instante que razões saudosistas me terão levado a guardar versões inacabadas de teses de mestrado e doutoramento, versões corrigidas, versões editadas, versões comentadas. Só papel. Fiquei apenas com as teses finais, cujos títulos, descubro, com imenso prazer, já não sei. Também deitei fora as versões papel de artigos publicados e fiquei só com as versões conclusas e efectivamente publicadas. As empresas de reciclagem vão agradecer.
E livros? Fiz uma pilha de livros para doar (aceitam-se sugestões de destino final) daqueles que, por inerência profissional recebo, que nunca abri e que, em rigor, nunca vou ler. O mesmo fiz com as carradas de cópias inúteis de livros com publicações minhas e que as editoras dão aos autores sabe Deus para quê: os meus amigos não deverão achar grande piada às secas que escrevo profissionalmente, portanto, não me vou armar em grande dama da ciência e estar a oferecer leitura absolutamente desnecessária e desinteressante aos meus amigos, claro. Também aceito ideias de doação neste caso.
Revistas? Ui... Decidi, aí sim com algum custo, desfazer-me das minhas revistas de moda: as Vogue e as Elle em edições portuguesas e estrangeiras. Eu, que sem ser fashion victim, sou uma fashion follower, tive mais pena de atirar o coração ao alto pelas minhas revistas de moda do que pelos livros científicos que não vou ler. Fútil? Sim, talvez seja um pouco. E daí? Guardei, no entanto, algumas Vanity Fair, todas as National Geographic, algumas de viagem, uma ou outra edição especial da Time e dessas que tais, uma ou outra Stern e deitei fora todas as de decoração e arquitectura. Também guardei uma ou outra revistas dos meus interesses profissionais. Mas tudo em doses espartanas, diria mesmo: muito espartanas.
Sinto que até respiro melhor, mais um eu leve, como se me desagrilhoasse de coisas que me prendiam simbolicamente. Mas ainda falta muita coisa. Só lembrar-me das resmas de documentos por catalogar... Eles ali a olhar para mim e eu a olhar para eles e vontade, nada. Acho que vou deixar isso para o aconchego do Inverno. E também vou ter de ordenar os cds e, se calhar, não era má ideia passar o pano-do-pó em cada um.
Vida, vida, que a domesticidade tem que se lhe diga! Só que, sem ela, nem vivemos nem nos encontramos no nosso espaço mais Eu.

17 de agosto de 2009

Home...


... is where the heart is.
E o meu coração está nesta casa. Aqui, com os meus espíritos, o meu passado, as boas e as más memórias, os espaços que conheço de cor, o cheiro a madeira antiga, o eco das escadas, o jardim.

Hoje. Hoje, estaciono à frente do portão e olho a minha casa com os olhos da primeira vez. O que será que vê quem vê esta casa pela primeira vez? A bougainvília fúchsia que cresce desmedida e que a Mãe plantou. A hera que eu plantei. As árvores sem nome que eu trouxe do Egipto dentro de uma garrafa de água vazia. As flores que o Sr. Luís plantou na Primavera e sim: o Spotty que percorre o seu reino com a pose de dono e a relva com os carreiros que ele abre nas suas deambulações. Home. My home. My heart.

Entro. Está fresco. A frescura calma que a minha casa tem no Verão, graças às ideias isolantes do Pai que a construiu anti-sísmica quando não se falava disso. Deposito as chaves na mesinha da avó Ária (sim, Ária). Subo à biblioteca que já foi do Pai, que a Mãe idealizou no papel e que hoje é só e tão completamente minha. Levo ideias de purga e a vontade derradeira que me tem faltado nestes últimos meses, pelo tanto que tenho sempre que fazer, pelo cansaço provocado por outras arrumações de quem tira alguém da vida. Há já muito pouco da outra existência. Mas esse pouco é para ser erradicado, agora, com a urgência vital que me toma de arremesso.

Papéis insignificantes, tão quanto os do meu casamento de papel esboroado, revistas que nada me dizem, disquetes de quando os computadores tinham disquetes, caixas de vídeo, molduras vazias: esqueletos de vidas passadas tão ocas quanto as molduras esventradas. Nada me dá nostalgia, nada me evoca nada. Será possível este nada? Este desapego? Este nada emocional? Tão nada que nem chega a ser vazio. Um nada que não me perturba e me deixa incólume à sua não-existência.

Cada coisa que sai é espaço meu que entra. Escorro suavamente para dentro da casa grande, "obscenamente grande para uma só pessoa", dizia eu por estes dias. Quero desmedidamente ocupar o espaço, o meu espaço. Apoderar-me das divisões onde nunca entro. Quero sê-las mais do que tê-las. A casa que é um pedaço tão grande de mim, como grande ela é. "Obscenamente grande para uma só pessoa"... Não me importo mais. Não me incomodam mais os ecos da minha única presença. Não me perturba mais o espaço em que me perco. Vou vivê-la com a vida de uma nova vida: a minha.

15 de agosto de 2009

Carta da Mãe


Há onze, onze anos que o mundo vive no silêncio da Mãe. Ela mora nos nossos corações e pensamentos. Está sempre cá em todos e cada instante como ausência densamente sentida, como presença implícita. Mas ontem, o mundo deu acordo da Mãe.
Ontem recebi uma carta enderaçada à Mãe. Endereçada e selada com carimbo de 11 de Agosto de 2009. Abri a caixa do correio e fiquei retida em mim com a carta para a Mãe na mão. Eu sou, hoje, a dona da casa da Mãe, eu sou, hoje, a Exma. Sra. que mora na casa da Mãe. Não quero abrir o envelope. Não quero saber do que trata. A Mãe recebeu uma carta onze anos depois de morrer e sou eu que a recebo. A carta não é para a Mãe. A carta é para mim.

- Mãe, tenho uma carta para ti que chegou para mim.

11 de agosto de 2009

Sonhos de um dia de Verão



Dias lentos. Lânguidos. Indolentes. Mansos.

Vogo à deriva num mar incandescente. Águas plácidas. Balanço na cadência suave que me adormece.

Lembro-me de Ramsés. O perfil régio do Faraó. Vem do Tempo. Dono do Tempo. Cativos os Hititas. Conquistada a terra longínqua. Estrangeira.
Pensamentos turvos pela luz excessiva. O dia corre...

9 de agosto de 2009

No Regresso a Casa


"Despedi-me das ovelhas,
Do meu cão,
Das casas velhas,
Do lugar onde nasci, ai, ai, ai..."

Apetece-me cantar esta canção. Certo que nasci numa grande cidade do Norte da Europa, mas ali, no meio da imensidão alentejana onde por estes dias me senti tão bem e tão em casa, apetece-me cantar esta canção alegre de despedida. Já fiz viagens fantásticas por esse mundo fora. Já estive em lugares de sonho exóticos. Porém, poucas viagens me têm deixado esta sensação pacificadora cá dentro do peito. Não sei explicar. Emudeço. São as primeiras férias em muitos anos que passo sem a figura de um marido e de amigos. Acho que faço um ritual de passagem e assumo esta minha vida nova com uma alegria inexplicável. Descubro que gosto da minha companhia. Perco-me sem bússola no meio dos meus pensamentos. Estou feliz para além de quaisquer palavras. Tão feliz que gostava de contagiar o mundo e repartir por todos esta sensação. Continuo sem saber explicar. E pasmo. Pasmo porque não precisei de ir ao Tibete ou ao cume do Kilimanjaro ou a um sítio inolvidável desses para ter esta experiência benigna de revelação feliz. Foi ali, no meio do campo alentejano, sob o luar cheio num céu infinito. Ali, a ouvir os badalos das ovelhas pela manhã e a apanhar amoras pela fresca. Ali, nas estradas infindas que atravessam a fronteira e nos levam ao passado em Mérida ou que sobem a Serra d'Ossa e desembocam em povoações decoradas a papel recortado. Penso em todas as férias maravilhosas que já tive: o Algarve da minha infância com a Tante Ruth e a Tante Henny a corrermos pelo sapal em Vale de Lobo, o deserto que amo e que me chama como sereia, a rota do Marco Polo na Ásia Menor, o Nilo, o Niagára, nem sei. Tantas férias maravilhosas e estas foram tão absolutamente especiais e únicas. E não precisaram de nada de extraordinário, só o céu, a estrada longa e o montado como paisagem. Tão pouco, e contudo, tanto...

Eu pensava que, nas férias perdida no Alentejo, me ia armar em Karen Blixen e trabalhar num livro que, por timidez, nunca deverá ver a luz do dia, ou que ia preparar papers para o novo ano académico. Mas nada. Havia sempre um chamamento qualquer que me levava para longe de escritas e trabalhos. Sempre uma tentação, à qual eu docemente sucumbia, que me transportava à terra seca, às sombras das árvores ou à estrada longa que acabava algures num horizonte inusitado. Qual Karen Blixen! Eu fui a Blonde miúda, a Blonde Blonde em paz com ela na curiosidade destes dias em que solidão foi tudo o que eu não senti.

Despeço-me. Caminho uma última vez com o meu chapéu de abas pelo restolho entre os sobreiros. Colho amoras que vou trazer comigo. Apanho fenos e galhos. Vou à horta e arranco pés de beldroegas que aposto a Zana não sabe que são deliciosas nas saladas. Inspiro o ar morno e sereno da tarde. Lentamente dou-me o tempo que me prepara para o regresso. E fico feliz por ter tanto de bom que me faça regressar à casa que amo com o seu cheiro a madeira antiga e polida, ao meu cão que me vai ignorar pelos dias de ausência, à minha família milagrosa porque só um milagre cósmico justifica a existência em união destas pessoas tão fabulosas e aos meus amigos que nunca me deixaram soçobrar quando a maré era mais forte do que eu.

Zana e Zé, obrigada por me terem dado as chaves da vossa casa e ma terem confiado nestes dias de sol e alegria.

8 de agosto de 2009

A Guerra acabou - RIP

Quando eu cheguei a Portugal havia a vaca Cornélia a preto e branco. Eu vinha de um país onde o meu desenho animado favorito era um boizinho azul com super-poderes. Enfim, tudo muito bovino. E foi assim que eu conheci o Raúl Solnado.
Sempre gostei da imagem da senhora a vender castanhas à porta da guerra.
Um grande humorista. Obrigada!

6 de agosto de 2009

Dia 6


Acordo cedo (como de costume). Hoje decido que vou tomar o pequeno-almoço a Fronteira. Não sei o que exista lá de interesse turístico para Louras com PhD, mas vou. Descubro que têm um Grémio Artístico, o que quer que isso seja, e admiro-me na admiração idiota de citadina que desce à província. Eu conheço o Grémio Literário em Lisboa, onde imagino sempre que me vão saltar à vista o Eça ou o Batalha, agora este Grémio? O que será? Não sei e continuo sem saber embora ache uma delícia.
No largo do centro histórico faço a habitual entrada triunfal da bimba loura de óculos escuros e chapéu de abas. Já sei que me vão dizer:
- A menina nã é daqui, pois não?
- Não, não estou só de passagem.
Não precisava adivinhar e também já me habituei à cena da loura no aquário. Saio do café e sigo para ver as vistas. Há um oratório fechado que me apetece ver.
- Ó que pena estar fechado. - Pronuncio alto a uma senhora que está a caiar uma empena de uma casa em frente.
- É bonito, menina. Experimente ir ali àquela casinha, tá vendo ali, e pergunte lá pela chave.
Não preciso. Alguém ouviu a minha conversa e vem com uma chave. Passam-ma para a mão e eu própria vou sózinha abrir o oratório.
Silêncio. O silêncio da paisagem grande transportado ali para aquele cubículo em forma de santuário. Cheira a cal e a fé, a velas e a mofo. Perco uns minutos a absorver a fé dos alentejanos.
- Obrigada, gostei muito.
- É bonito, nã é, menina?
- Sim, muito. Mesmo muito bonito.
- Vou lá pôr uma velinha por si, menina.
Nem sei o que respondi de tão atónita pelo espírito pacato e humilde destas gentes que caiam casas e rezam aos santos na imensidão quente da planície seca.
Sigo para o Redondo. Aqui há dias vi um anúncio em Monforte que falava de ruas de flores de papel. Quero ir ver o que é.
Atravesso a Serra de Ossa com o Freddy Mercury a cantar "Who Wants to Live Forever". Canto baixinho e contente porque era uma das canções preferidas da Mãe (que pronunciava sempre "Marcurry" à alemã). You wouldn't want to live forever, Mutti.
- Desculpe, para o Redondo? - Pergunto às primeiras pessoas que vejo à sombra de um toldo de supermercado na primeira povoação depois da serra.
- O Redondo é isto!
- ?! - Caramba, e onde é que estava a placa indicativa?
Entre manobras e contra manobras com a carrinha lá consigo estacionar mais ou menos onde me indicaram. Percorro as ruas enfeitadas a papel multicolor numa demonstração da cultura popular que atrai forasteiros, como eu, à vila. Not my cup of tea, mas aprecio a experiência naïf e, claro, a paciência e o trabalho dedicado que deve dar montar uma coisa destas.
Já que estou aqui, apetece-me levar vinho do Redondo. Pergunto pela adega cooperativa e lá vou eu, sabendo de antemão que me vou perder mais a carrinha um cento de vezes. Entro na adega. Não vejo loja nenhuma. Aliás, não vejo ninguém. Entro por portas abertas e dou comigo no laboratório. Depois passo para a adega dos tonéis. Ainda penso gritar o inglório"Está aqui alguém?", mas refreio o ímpeto. Oiço martelar em metal e sigo a origem do som.
- Boa tarde. Desculpe, sabe onde se vende vinho?
O homem deixa de martelar e juro que consigo ver-lhe um enorme ponto de interrogação a pairar sobre a cabeça.
- Ai menina, isso é lá na adêga mais êm baixo. - Explica qual a rotunda que tenho de tomar, a saída e todos os etcs.
- Então já foi à nossa festa?
- Ó sim, venho de lá agora.
- E gostou? É bonita de se ver, nã é?
- Sim, muito bonita.
Trago vinho em garrafas que tilintam na bagageira. Algures a meio da serra passo por cima do único buraco nas estradas no Alentejo. Que raio foi aquilo?
Chego a Estremoz e ouço o meu neurónio dizer qualquer coisa que não percebo (o normal!). Travo o cérebro a fundo e, sem saber como, dou comigo a caminho de Vila Viçosa: o primeiro palácio português que vi devia ter alguns 7, 8 anos.
Entro na visita guiada das 4 da tarde. Lenta. Desinteressante. Oiço o guia dizer que o Kaiser Guillherme II começou a II Guerra e que Queens é um bairro negro. Inspecciono o grupo. O desgraçado do único alemão que lá vai não fala português, Gott seid Dank!, e não há americanos. Acabo de destruir uma memória boa da infância e fico danada com a ideia peregrina desta cabeça loura. Chego ao carro e tenho um pneu em baixo. O único buraco de estrada no Alentejo deu-me cabo de uma jante! Tenho assistência em viagem mas não estou para esperar eternidades.
O resto é a história típica da Loura desconhecida numa oficina de pneus... Mas, ao menos, venho de volta a Cabeço de Vide com os pneus numa maravilha. Am I good or what? Damm, I'm good!
Foi um dia bom. Um dia destes bons aqui no Alentejo.
Chego a casa. Um corcel atropela-me e acho que tenho um enfarte. Deve ter sido das amoras silvestres.

5 de agosto de 2009

Dia 5


E qual é o melhor amigo de uma Blonde em férias no Alentejo profundo?
Fenistil Gel, pois claro!! Ó Zana, eu bem sei que tu disseste para eu dormir debaixo do mosquiteiro, mas que queres? Eu não sei que voltas dou que acordo toda enrodilhada naquilo (já viste o que são as parangonas: "Blonde encontrada morta estrafogada em rede mosquiteira"? Ainda alguém pensa que eu tinha um fétiche marado qualquer. Ó céus eu queria uma morte mais digna!). Depois, ando toda sprayzada de repelente de insectos (ainda ontem comprei um "extra fuerte" em Espanha) mas as doidas das melgas mordem-me nos pés e ando que pareço um Cristo emborbulhado!
Hoje não saí da herdade. De tarde, agarrei num balde e fui por esses silvados apanhar amoras. Voltei aos tempos felizes em que eu e a Mana passávamos férias na casa da Avó Matilde e íamos, pela fresca à tardinha, apanhar amoras. Ficávamos com a língua e os dentes pretos e jogávamos ao despique a ver quem comia mais bagos. Pois, lá estive hoje, rindo em silêncio com a minha figura: chapéu de abas e dentadura preta de tantas amoras:
- Blonde Josefina, tu vê se atinas que, na volta, nem o Imodium te salva! Imagina tu que te passa aí um Príncipe num belo corcel branco e te vê nesta linda figura de balde no braço toda pegajosa das amoras esborrachadas e toda perfumada de repelente. Depois fala contigo e tu nem dentes tens que se vejam. Ó deuses, que triste figurinha!
Amanhã é dia turístico. Hoje foi dia de dolce fare niente. Hmm... que bom!

4 de agosto de 2009

Dia 4


E a pedido de várias famílias, cá vai a crónica do dia. E que dia inesperado...
Aqui na herdade a alvorada é... bem... alvorada que a bicheza levanta-se bem cedo e logo reclama atenção. Mas, depois da bicheza tratada e do duche tomado, é dia turístico.
Monforte, bem lá no alto. Tomo o melhor (mas de longe) abatanado da minha vida loura (caso estejam a pensar o que raio é isto, é um long coffee que tomam as Louras com ascendência de países em que expresso é o café dos latinos). Adiante.
As estradas aqui neste Alto Alentejo são um prodígio: não há buracos, não há trânsito, há bom pavimento. Chego a Elvas num instante. Páro e, pela primeira vez, detenho-me no aqueduto que saúda o viajante. E, já que estou aqui, que tal ir a Badajoz?
Loura que é loura só pensa uma vez. Prossigamos até Espanha, olé!
Mas, afinal, o que é que há em Badajoz? Não, não vou para Badajoz. Viro para Mérida. Sempre lá quis ir e aqueles documentários da National Geographic sempre me atiçaram a curiosidade. Vou, pois a Emérita Augusta.
38º à sombra. Podia ser pior.
- Es muy rubia. - Ouço de passagem. E, claro, apesar do protector solar SPF50+ nos braços, cara, decote, etc., pareço um semáforo aceso na cor de stop! (O que vale é que encarnado é cor de louras e diz bem com o azul do vestido. Ó triste sina!)
Almoço "huevas de merluza" e "mejillones". Entretanto, pára tudo para a sesta, excepto a "rubia" doida e mais uns quantos bifes igualmente a sinalizar stop de semáforo. De facto, só mesmo não nativos para se darem ao calor e ao trabalho. Mas vale a pena. Em cada esquina ruínas de uma era antiga que ombreiam com a cidade moderna dormente no Estio. Pasmo com a enormidade da cidade romana. Mas, mais do que isso, fascina-me que um povo preso no interior ibérico há mais de mil anos apreciasse tanto a arte e o espectáculo. Um teatro e um anfiteatro lado-a-lado explicam muito desse povo: que era próspero, culto e dispunha do ócio em que a cultura pode florescer. Olho para nós, contemporâneos deste vigésimo primeiro século, e noto que nem evoluímos assim tanto, nem aprendemos assim tanto.
Um dia inesperado, portanto. Inesperado de bom, nestes dias felizes de férias.
(Specially to Zana)

3 de agosto de 2009

Manhã do dia 3




- Bom dia! Pode dizer-me onde é o Correio?
- Ó menina, êle acabou de passar aqui!
- ?!
- Tá a vêr além aquelas larangêras? Êle deve de tar por ali.
São 10 da manhã. Saio de casa sem tomar duche e com urgência. Arranco para Cabeço de Vide. Páro o carro onde vejo dois senhores sentados nos degraus de um portal. Abro o vidro e pergunto onde são os Correios. A Zana foi de férias, esqueceu-se do carregador do telemóvel e arrisca-se a ficar incomunicável. Eu, que me mudei por estes dias para a casa dela, fiquei de lho enviar por encomenda expresso.
- Não, não é o correio: o edifício dos correios. - Pergunto de novo enquanto me lembro que, calhando, deveria ter dito casa em vez de edifício.
- Atão, segue por esta rua adiante e lá nas larangêras vira à dirêta.
Sigo, e depois de me perder lá no sítio das larangeiras e de perguntar a um casal onde são os correios, lá chego aos ditos. Dou com o nariz na porta. Só abrem às 11. Bem, vou fazer tempo para um café e tomar o pequeno-almoço.
- Nã, aqui nã temos bolos nem essas coisas. Isso só ali mais em baixo na pastelaria.
Caramba, mas isto tem escrito "Café"! Como é que um Café não tem uns bolinhos e umas torradas para o pequeno-almoço? Queres ver que é um Café segregado e coisas de senhoras são noutro Café? De facto, só lá estavam homens. Desço a rua e há, de facto, uma pastelaria onde, mais curioso ainda, só estão senhoras. A escolha não é muita mas arranjam-me uma torrada de pão alentejano. Deliciosa!
Como enquanto noto que sou o tema de conversas e centro de olhares: quem será a tipa dos óculos escuros e chapéu de abas?
11.05. Chego aos Correios e, estupidamente, vejo agora, procuro e pergunto pela máquina das senhas.
- Aqui nã há senhas, menina.
Também não há fila mas há um monte de senhoras à minha frente. Carregam telemóveis, pagam a conta da EDP e levantam a pensão (noto que uma é de 300 e poucos euros e fico escandalizada com este país).
Preciso de fósforos. Pergunto onde é o supermercado e meto-me ao caminho.
- Nã temos. Só quinta-feira.
- Não me diga! E onde acha que aqui posso comprar fósforos?
- Exprimente aqui no café ao lado.
Experimento, enquanto constato que, para uma vila tão pequenina, já vou no terceiro café no espaço de uma hora e pouco.
- Ó menina, nã temos fósforos. Mas se a menina chegar mais adiante vê uma casa com um pézinho azul e entra no portão que a minha cunhada tem.
Primeiro penso que o pézinho deve ser uma bifurcação qualquer na rua ou uma espécie de rotunda. Nem pergunto o que seja. Mas chegada, vejo uma casa com um rodapé azul. O pézinho deve ser o rodapé, só pode. Vende sanitários e materiais de construção e... fósforos! Deus seja louvado, quem se lembraria de comprar fósforos onde se vendem lavatórios e toalheiros?
- A menina nã é de cá, pois não?
- Não, não, estou de férias.
- Nas termas?
- Não propriamente.
- Então pode levar aqui uns cartõezinhos para quem vier para as termas? É que eu alugo uma casinha.
- Levo com certeza! (Não sei bem para quem, mas levo, sim senhora).
Enquanto aqui estou sentada na cama à hora da sesta (hoje não me apetece sair, mas ontem fui a Marvão e a Castelo de Vide... maravilhoso dia!), penso no país de assimetrias que este é, penso que a política é uma coisa de lisboetas, penso que as eleições se fazem para o país de Lisboa, penso que sou uma lisboeta (quer queira, quer não, mas ainda bem que sim) que vive num mundo de superavit de desenvolvimento. Penso que me estou a divertir à grande nestas férias rurais, que estou a adorar estar aqui neste Alentejo, neste campo, nestas vilas históricas, nesta raia a perder de vista. Mas penso, também, que, neste país falamos linguagens diferentes e que não são só auto-estradas que vão aplanar as diferenças entre litoral e interior.

1 de agosto de 2009

Noite 1


- Shit! Shit! Shit!
Lembro-me da cena derradeira de "A Entrevista com o Vampiro". Sim, essa em que um Lestat semi-morto de décadas segue no carro com o jornalista que entrevistou o vampiro. Os faróis do carro estão em máximos mas só vejo sombras assustadoras. Imagino que uma Banshee me salte ao caminho. São 11 da noite e eu estou no meio de nada e, portanto, não estou a meio de coisa nenhuma. Sinto os meus medos irracionais ganharem forma.
Há cinco minutos atrás estou sossegada a rememorar um dia extraordinário. Vejo as fotos maravilhosas que tirei, as paisagens que cheiram à hortelã bravia que os meus pés calcam por entre os asseiros do montado. Vejo a luz tremeluzente que se esgueira entre folhagens velhas de anos e estações. Oiço o silêncio quebrado em sobressalto pela presença do cheiro estagnado, doce e denso de uma figueira gigante cujos ramos vencem silvados e ombreiam com sobreiros num matagal de verde impenetrável. Revejo imagens de um luar cristalino emoldurado em oliveiras. O luar que agora me arrepia.
- Shit! Shit! Shit!
Esqueci-me de fechar os portões da herdade. Tenho de sair, enfrentar a noite de breu. Pego nas chaves do carro, nas chaves do portão. Tranco a casa atrás de mim. Estou só, na rua, na noite, no vazio alentejano sem nada por perto. Pego na Xuga e meto-a no carro. Não há fecho central. E agora? Tranco as portas empurrando os pins para baixo. A meio do caminho e dos terrores de assombrações e salteadores lembro-me de que deixei o telemóvel em casa. Isto não está a acontecer! Sei que não tenho ajuda em circunstância alguma. E a escuridão... A escuridão...
Conduzo a 10 à hora. Desvio-me de pedras e buracos. Conheço mal o caminho. É longe até ao portão como longe e grande de espaço é o Alentejo. Sinto pressa de fugir mas o caminho faz-se à razão de centímetros.
Finalmente o portão!
Estou trancada!
Não consigo sair do carro!
O pin da minha porta não mexe!
Não é possível que eu Blondewithaphd esteja trancada num carro com um mini cão ao lado, numa noite de sábado, em pleno Alentejo profundo, sem telemóvel, sem nada!
Ao melhor estilo cinema fantástico de Hollywood corro com as mãos ao pin da outra porta. Enxoto a Xuga e, de joelhos no assento do pendura, tento desencravar o pin. Liberdade! Saio do carro e vou abrir a minha porta. Corro ao portão. Fecho o cadeado. Volto ao carro. Tenho, nem sei como, de fazer inversão de sentido de marcha. Penso no Lestat atrás. Xuga, que raio de cão és tu que não me afastas os medos?
A casa! Santuário. Adeus Lestat!