20 de junho de 2010

Saramago: funeral-comício

Por muito que eu não quisesse, porque não aprecio particularmente, acho que era impossível deixar passar em claro uma qualquer espécie de epitáfio a José Saramago.
Nunca me seduziu pela escrita. O máximo que consegui ler foi metade da Journey to Portugal e porque li em tradução, que é em si transformação. Não leio Saramago como não leio Günter Grass (para quem pudesse achar que o facto de eu ter nascido lá onde se fala alemão me predispunha preconceituosamente para a literatura alemã. Não é o caso e, aliás, prefiro o pouco que conheço da literatura lusa ao mais que conheço da germânica). Questões de gosto pessoal que não acho me menorizem intelectual ou culturalmente. Portanto, não discuto uma obra que conheço insipientemente, o bastante apenas para me posicionar em relação a gostar ou não.

Agora, que o cânone do Bloom se enriqueceu por outro Dead White European Male (e basta ver os Nobel da Literatura para constatarmos a regência espartilhantemente sexista e étnica do cânone), Saramago ascende ao panteão olímpico dos deuses da palavra. E o engraçado é ver como o país lidou com as exéquias fúnebres. Continuamos tão pequenos, meu Deus!
Na comunicação social era ver e ouvir com horror estes jornalistas todos que falam mal, que atropelam a língua, que têm um vocabulário reduzido, que não distinguem preposições de conjunções a dar conta do óbvio, a perguntar o óbvio ad nauseam nos infindos directos, também igualmente ad nauseam. Ou então, imprimindo um cunho de relevância internacional à morte de um Nobel nosso, lá iam empolando o que o vasto lá fora noticia da morte de Saramago. Não dei conta, nesse imenso lá fora, dessa pseudo-magnitude desta morte. Aliás, bem mais noticiado era o casamento real na Suécia ou o facto mesquinho de os príncipes britânicos terem enfiado um anónimo qualquer nos balneários da selecção inglesa no Mundial.
Depois era ver o povo todo, coitado, que vai ao funeral, que chora e lamenta mas que nunca leu, que não conhece, que talvez vá ler mas que nunca comprou um livro. Sempre o mesmo Portugal iletrado em que literatura tem uma versão light instituída e é essa que anima o mercado e em que qualquer tia ou tio, apresentador de TV ou apresentadora rapidamente se transforma num best-seller da melhor tiragem.
E, claro, o aproveitamento político. Os cravinhos encarnados. Os punhos erguidos, os camaradas e as palavras de intervenção como na reforma agrária. O povo que se despede de um Saramago como quem se despede de um Cunhal. Ou então, no extremo oposto, o nacionalismo do poder instituído que se apropria e cria um herói nacional, o escritor que é nosso, nosso e português, tão português que o embrulhamos na bandeira, lhe damos um funeral de Estado e nos asseguramos que é aqui que lhe ficam as cinzas, afinal ele é nosso e só nosso. Patético tudo.
Não sei o que o escritor morto pensará disto tudo. Na mordacidade que penso o terá caracterizado, acho que se terá divertido, que se terá sentido vingado. Penso, sobretudo, que, como homem inteligente e de vida longa, terá olhado para isto tudo com olhos da complacência de quem já não se chateia com nada mas que percebe tudo. Também acho, com o achar da certeza absoluta, que deu razão em morte à crítica que sempre teceu em vida à Igreja dos Homens (porque, quero acreditar, seria essa a sua crítica e não à de Deus): indecente, vingativa, despótica, obtendo deleite no prazer inquisitorial. Não era preciso o Vaticano lhe ter escrito o epitáfio do homem-anátema, afinal o homem-anátema já cá não está e bem longe está da humanidade que o possa julgar.
Acho que morreu bem.
RIP

7 comentários:

antonio ganhão disse...

Sim, morreu morto. Talvez Cavaco tenha lido esta tua crónica e tenha decido não aparecer nem se fazer representar. E esse peso recai todinho sobre a Blonde.

Pergunto como alguém pode não se entusiasmar por uma literatura que nunca leu. Deixei um Gunter Grass a meio. Talvez um dia volte a ele.

Felizmente, este acontecimento não perturbou o quotidiano da Blonde, será já efeito do sobrinho que aí vem? Existirá salvação para a Blonde? Aguardemos pois, pacientemente, pelos próximos anos.

. disse...

Concordo consigo quando aponta algumas questões pertinentes no modo como a comunicação social tem vindo a revelar muito pouco cuidado com a nossa língua, como falta de formação e outras virtudes igualmente importantes (além do bom senso e de saber quando enough is enough). Permita-me, apenas, um apontamento. Em latim, a palavra "nausea, ae" é da primeira declinação, feminina. E "ad" rege acusativo. Logo, devemos dizer "ad nauseam" em detrimento de "ad nausea".
Um beijinho e parabéns pelo seu sobrinho :)
Joana

Goldfish disse...

Não percebi a parte final, "deu razão em morte (...) prazer inquisitorial". O que fez a Igreja dos Homens no funeral de Saramago? É que, como dizes, não se pode com a comunicação social nestes casos, pelo que pouco sei do que se passou.

Blondewithaphd disse...

Ju,
Em bom Inglês: I stand corrected! obrigada.

Eu Mesma! disse...

Correndo o risco de parecer insensivel... não sei... saramago morreu.. sim...

é triste... é mais um icone portugues que desaparece ... um portugues a não viver em portugal... nao tendo sido o primeiro mas sim... o ultimo portugues a receber um nobel mas...

não sinto nada... é que... saramago é alguem que de facto nada me diz... a escrita nunca me cativou... a pessoa em si ainda menos..

enfim...
menos um icone portugues no mundo...

Pedro disse...

do silêncio que chega
chega que silêncio

Pedro

António de Almeida disse...

Também nunca li Saramago. Quanto ao homem estava nos meus antípodas políticos, eu acredito na Liberdade, ele defendia regimes que acreditava serem o paraíso na Terra onde nascia um homem novo, na verdade faleceu sem ver cantar o amanhã...