4 de novembro de 2011

Os bilhetes da Mãe

Este blog já viu muito da saudade da Mãe em que habito todos os dias da minha existência. Textos de alguém que chora uma perda irreparável. Palavras nostálgicas, longas de dor, apertadas. Mas as memórias da Mãe não são só de um Amor perdido, não são só de imagens de uma Mulher belíssima que nos ofuscava e com quem eu e a Mana somos ainda e sempre comparadas a uma luz de menor intensidade. As memórias da Mãe são também de uma Mulher com uma sabedoria calma. Não se trata apenas de ser culta e de me fazerem falta as conversas profundas que tínhamos e que eu nunca mais pude ter desde que Ela morreu. Era a sabedoria pragmática da Vida que Ela aplicava a tudo o que fazia e, sobretudo, à educação de duas meninas que Ela insistia serem criadas para serem seres humanos capazes.

Acho, que nos dias de hoje, nestes tempos de gerações à rasca de pessoas enrascadas por educações lenientes e extremadamente complacentes, faz talvez falta chamar à pedra a responsabilidade que todos temos enquanto educadores e educandos.
A Mãe fazía-nos bilhetes de tarefas.

Nas férias ou nos fins-de-semana em que eu e a Mana estávamos mais descansadas de estudos e deveres da escola era certo e sabido que ao pequeno-almoço nos esperavam, bem em cima do tampo do frigorífico, uns papelinhos escritos a lápis de bico grosso com tarefas para cumprir naquele dia. Os bilhetes.
Normalmente havia um número ímpar de tarefas para que eu e a Mana negociássemos a divisão. À frente de cada tarefa tínhamos de pôr a inicial do nosso nome para a Mãe saber quem fazia o quê:
- Lavar a loiça
- Limpar a loiça
- Ir ao pão
- Varrer a calçada do jardim
- Pôr a mesa
Quem de nós ficasse com mais tarefas num dia, no outro era mais aligeirada. O que não podia haver era tarefas sem um risco por cima, a indicar terem sido cumpridas, ao final do dia. Não havia discussão. E os bilhetes eram um dado adquirido da nossa infância e adolescência. Às vezes havia tarefas que valiam por muitas. Regar o jardim no Verão era uma delas. A quem coubesse regar o jardim já só faria mais uma tarefa. E, claro, havia tarefas que não constavam nos bilhetes porque não eram mais do que a obrigação das meninas: fazer a cama e arrumar os respectivos quartos.
Olhando para trás vejo que os bilhetes não nos traumatizaram, não nos tiraram tempo, não nos causaram discussões. Nem sempre gostávamos muito, é óbvio. Mas hoje falamos deles com saudade e  a lembrança de uma ou outra tarefa mais exótica que a imaginação da Mãe vertia nos bilhetes: apanhar um cesto de ameixas ou descascar pêras para um doce que a Mãe ia fazer. Sobretudo, entendo como os bilhetes eram uma maneira muito sábia de educar meninas para a responsabilidade.
Tenho tantas saudades, Mutti.

9 comentários:

Fernando Lopes disse...

Tenho sempre dificuldade em comentar posts pessoais. Este é particularmente interessante porque prova que se podem conjugar amor, disciplina e responsabilidade. Coisas pouco em voga nos tempos que correm.

Anónimo disse...

Estamos em sintonia, Blonde. Ontem escrevi um post no sentido inverso, mas cuja conclusão é idêntica.
A minha saudade vai para o pai desaparecido prematuramente, porque a Mãe, ainda cá está.
Bom fds

Leonor disse...

Beijos, Blonde. Ainda guardo alguns bilhetes do meu pai ou coisas escritas com a letra dele.

mfc disse...

É esta educação austera e ao mesmo tempo carinhosa que falta hoje em dia!
Uma reflexão lúcida e actualíssima!
Ahhh... e linda!

Unknown disse...

Que lindo! Quando for mãe, quero ser assim. :)

Daniel Santos disse...

muito bom.

Fernando Vasconcelos disse...

Felizmente não tenho ainda saudades dos bilhetes da minha mãe ... quero dizer já não tenho bilhetes mas tenho a sua companhia. Entendo porém o que diz, tenho saudades desses bilhetes embora escritos por outra pessoa, também "educativos" embora de um outro género ... mais do tipo Nã não te esqueças de fechar a porta ou não te esqueças de ... saudades mesmo. Entendo ...

S* disse...

Texto difícil de comentar, mas muito bonito... a saudade pode ser bonita.

luisa disse...

Saudades. Não de bilhetes mas da minha mãe, também. E saudades de uma mana ou mano que nunca tive.