31 de janeiro de 2012

Terra arada

Nunca pensei chegar este dia: ir confirmar que os terrenos estão lavrados, que sou eu que estou por trás, que aquilo andou uma geração para a frente. Lembro-me de o Pai ir ver como estavam as lavras. Lembro-me de ele tirar fotos. Lembro-me dos planos dele e de como ele mantinha tudo aquilo vivo e produtivo. Hoje senti-me nos sapatos do Pai mas era eu de máquina na mão, ténis e roupa de treino, óculos escuros e a curiosidade de ver como tinha ficado o trabalho. Janeiro vai seco e dou comigo a pensar as estações sem a sensação citadina mas na necessidade agrícola. Nunca pensei aqui chegar mas hoje estou orgulhosa desta terra lavrada à qual quero fazer bem.

30 de janeiro de 2012

O Humor dos Portugueses

Vivendo no meio de vós, há uma coisa que sempre me surpreendeu pela positiva: a facilidade que os portugueses têm para o humor nas situações adversas. Quando por aqui me detive com memória de gente na década de 80 havia aquele humor da Ivone Silva e do Camilo de Oliveira, do Herman, um humor que punha a crise de então a rir de si própria. Veio a riqueza artificial e o humor alterou-se para algo mais sofisticado que, me parece, nunca foi inteiramente português, fazia-se stand-up comedy e, pela própria expressão, não era algo luso e nosso. Agora que voltou a crise vejo que se reencontrou o humor que já vem dos tempos de um Bordalo, de um Eça e de um Ramalho: goze-se com a crise, as dificuldades e o abismo. Voltámos a rir de nós no nosso depauperamento. E nisto os portugueses são exímios. Purgam-se pela catarse. Louvo-os nisto enquanto me rio com gosto com o seu à-vontade para descontruírem a crise. Bem-hajam!

27 de janeiro de 2012

Sobre o fim dos feriados

Há coisas que me enervam de tão parvas que são. Esta da eliminação dos feriados acho que bate os recordes da asnice. Gostava que me provassem, sem engenharias estatísticas, como é que a abolição de quatro feriados nos vai fazer sair do buraco tornando-nos imensamente mais produtivos.
E agora a minha opinião enxofrada:
Como é que se acaba com o 5 de Outubro? A minha família materna é toda para o monárquico mas eu orgulhosamente degenerei e sou republicana até à medula. Afecta-me que tenham acabado a Monarquia num banho de sangue inglório, mas deixar de assinalar a nossa republicanidade?!
E que dizer da nossa independência se a nossa História é uma de luta contra os intentos castelhanos? Se andamos à espadeirada aos espanhóis desde antes de nos conhecermos como gente e a D. Teresa se passar com a irmã? Que diria a pobre da padeira de Aljubarrota se nos visse neste desatino?
Eliminam-se dois feriados católicos. Tudo bem há que manter aqui uma certa equidade mas num estado que se diz laico e estando a nossa lealdade ao rito pelas ruas da amargura e a ignorância das novas gerações na total incapacidade de crerem no que quer que seja, não me feriria a consciência (católica) se os feriados a eliminar fossem mais os religiosos do que os laicos. Aliás, o povo que somos não o é por ser católico, é-o pelas opções de destino colectivo que tomou, pelas batalhas em que se envolveu, pelos momentos fracturantes da sua História. Não somos o povo que somos por causa da Ascenção de Nossa Senhora, do Corpo de Deus ou da Imaculada Conceição. Somos o povo que somos porque somos tenazmente independentistas, republicanos, anti-ditadura e pró-liberdade.
E já que é moda compararem-nos aos países ditos desenvolvidos aqui fica que os alemães gozam de nove feriados federais e, pelo menos, mais um feriado estadual e não os vejo a dizer que é por isso que produzem menos Volkswagen ou que o DAX cai a pique de cada vez que é feriado em Frankfurt.
Não há outras ideias mais inteligentes para governar o país?   

26 de janeiro de 2012

A crise que para aí vai

Leio-a nos jornais. Dou conta dela nos blogs. Vejo-a na cara das pessoas. Sinto-a nos cortes que me são feitos. Mas uma coisa é este saber generalista outra é quando a confrontamos nas palavras que gente nossa conhecida nos transmite. Hoje dei-me muito conta da crise e de uma maneira brutal numa ida aos correios.

Conheço pouca gente aqui onde moro, mas, sem que eu saiba como ou porquê, toda a gente me conhece. A D. Adélia dos Correios é uma dessas pessoas. Hoje entrei para meter uma carta para a Tante Ruth que, na sua longevidade distante, ainda não aderiu aos mails. Cumprimentei a D. Adélia com os votos de bom ano. O bom ano que ela não sabe se vai ter com a privatização dos Correios e a redução no mapa de pessoal. O marido está no fundo de desemprego e com o subsídio em final de prazo. A filha ficou ontem sem emprego. Falou-me das despesas da filha e do neto de dois anos e dos seus 55 na juventude para a reforma e na velhice para o emprego novo no caso de ficar sem este. Fiquei atordoada.
Que tempos são estes, meu Deus? Que país é este? Percebi naquele instante a indignação dos que não gostaram que o Presidente da República tivesse dito que nem sempre o dinheiro lhe chega para as despesas. Nunca deixámos de ser o país pobre onde eu cheguei há muitos anos. Vivemos na miragem da abundância da União Europeia como vivemos um dia na miragem da abundância do ouro do Brasil. Não sabemos transformar miragens em realidades e voltamos sempre a cair no buraco profundo da nossa crise endémica mal as miragens se dissipam.

22 de janeiro de 2012

Cheguei

Cheguei. Sem rugas, flacidez ou celulite. Só por isso estaria feliz. Cheguei. Independente e tendo-me a mim apenas para explicar esta Vida. Cheguei de tesoura de poda na mão para tratar das roseiras que nunca tratei. Cheguei de vassoura na mão para varrer o quintal que nunca varri. Cheguei com os planos de ressuscitar os terrenos. Cheguei com o PhD no passado. Cheguei com a mente cheia de memórias de oceanos e desertos e paisagens distantes que os meus pés já pisaram. Cheguei com as grandes perdas por que passei, as decisões certas e erradas que tomei, poucos arrependimentos e muitas saudades. Cheguei só, rodeada de gente. E, sobretudo, cheguei com o pressentimento de que vai ser melhor.
Há muitos, muitos anos li que os capricornianos chegam tarde à felicidade, que guardam o melhor para o fim. Agora, quando olho para trás, e sem crer em astrologias baratas, vejo que a vida me tem sido melhor com o passar dos anos. Talvez seja verdade que guarde a felicidade para mais tarde. Pelo menos, os grandes fardos e as grandes dores têm sido depostos no caminho. Não antecipo o que ainda possa estar por vir, que novas tormentas se abaterão sobre o navio. Penso, no entanto, que talvez não sejam tão ciclópicas como as que por aqui já passaram. E esta espécie de clarividência deixa-me no optimismo moderadamente feliz com que aqui cheguei e que, vindo do nada, me tomou de surpresa.
É bom chegar como cheguei.

19 de janeiro de 2012

Acordar feliz e falhar o cruzamento

Hoje acordei feliz sem razão aparente. Uma das raras ocasiões em que a Vida nos acomete uma onda de felicidade à conta de nada ou à conta de tudo. Não se desvaneceu a felicidade do nada com o correr do dia. passei o cruzamento em claro e só acordei na estrada estranha envolta em barracões de indústria e não nos montes de verde que me levam a casa. Despertei a tempo de desfazer o erro, que nem foi erro, foi só o estado raro que hoje me tomou de assalto para que eu pense mais vezes nas benesses que tenho e não no stress crónico deste quotidiano.
Acordei feliz por nada e o nada é tudo.

17 de janeiro de 2012

Às vezes penso

Às vezes penso no que me estará reservado agora que estou quase a passar o cabo. Não é bem no que estará reservado é mais no que farei com o Tempo que me é dado. Que decisões tomarei nas encruzilhadas, nos arrepedimentos que vão surgir e como é que eu vou olhar para trás ao fim de mais uma metade. Parece-me tudo ontem, tudo perto e já não é bem assim. Ando a pensar na Alemanha como fantasma que paira. Preciso ir e adio. Penso que a Mãe morreu ontem. Aqui há dias partiu-se o termómetro com que Ela nos via a febre. Pareceu-me mais um pedaço Dela que ia para longe de mim no tempo. Peguei nos restos e enfiei-os na gaveta que Ela habita aqui em Casa. A Mãe é esta Casa, mas é também uma gaveta. O resto Dela são pensamentos e imagens tão próximas que têm som. Imagens tão distantes que têm sol.
Estou quase lá. Há decisões a tomar. As mais importantes. Decisões que eu protelo e que me criam este estado de ansiedade permanente de querer tomá-las e não ter coragem para dar o passo. Procuro luz em livros de vidas como a minha, só que ninguém vive a minha vida. Estou no cruzamento do agora ou nunca e não sei que decidir. Acho que vou pelo nunca apesar das mil razões para o agora. Talvez vá querer o nunca porque não posso querer o agora que me escapa no individual. Só que um dia, depois de escolher o nunca, vou ver que o agora é que era o caminho. E mais uma vez a frase do Woody Allen que se tornou o meu mantra: somos a soma total das nossas decisões.

13 de janeiro de 2012

A Tante Henny morreu

Eu esperava isto há muito tempo. Li a notícia na caligrafia quase imperceptível da Tante Ruth. Poucos pormenores, apenas a informação aliviada de que se conseguiu despedir dela. Há muitos anos que eu sabia que a Tante Henny ia morrer primeiro do que a Tante Ruth. Li a carta sem mais sobressaltos do que quando leio as cartas normais da Tante Ruth que desta vez me pede para ir ter com ela antes que não haja tempo. Comecei ontem a despedir-me dela.
Da Tante Henny guardo as memórias de infância de quem me ensinava canções e se passeava pelo Algarve em Verão agarrando a mãozita da minha irmã. Eu era mais sorumbática e apegada à Tante Ruth, a Mana, sempre muito expansiva e cantarolas, emparelhava com a Tante Henny e corria pelos areais selvagens de Vale do Lobo a fugir à apanhada com ela. E lembro-me da Tante Henny num restaurante em Rheydt numa vez que ela me confidenciou que havia uma coisa que ela nunca tinha percebido no meu Pai mas que nunca tinha tido coragem de lhe perguntar: o que é que ele queria dizer de cada vez que a via e se despedia até sempre? Expliquei-lhe um pouco da alma portuguesa que o Pai às vezes deixava transparecer. Não sei se ela percebeu e agora nunca saberei.
Tinha um riso franco e sonoro, a Tante Henny. Larga e grande impressionava pelo físico que se desconstruía naquelas gargalhadas de quem gostava de viver porque sabia o que era lutar para poder viver. Nunca a ouvi falar da Guerra como ouvia à Tante Ruth a história da fuga delas da Berlim ocupada, das rajadas de metralhadoras enquanto atravessavam o Spree para o mundo livre. Pararam quase ao pé da Holanda onde eu fui nascer e sempre chamaram Heimat, pátria, à Alemanha que tinha ficado ocupada por outro regime. Mesmo depois da reunificação continuaram a chamar Heimat àquela terra.
A Tante Henny morreu e eu sabia que ela ia morrer. Ainda não disse ao Pai nem à Mana. Tenho de ir rápido a Berlim. É visceral. A Tante Henny morreu mas não imagino a devastação quando morrer a Tante Ruth. Tenho de ir rápido a Berlim mas penso irracionalmente que não quero porque isso é despedir-me, é não voltar a vê-la. Eu despedi-me da Mãe e não quero mais despedidas.
A notícia chegou ontem mas só hoje me estou a dar conta do que se está a passar: as Tanten estão a morrer e o meu passado está a acabar.
"Até sempre", Tante Henny.

11 de janeiro de 2012

E vão duas

Serrote. Tesoura de poda. Coragem. A ver se poupo em jardineiro, que a crise toca a todos, decidi podar as roseiras do jardim. E neste suplício descobri que são oito. Já despachei duas. Se florirem na Primavera saberei se as podei bem ou não. Vou fazer as outras seis em suaves prestações. Abri o pulso direito, espetei-me, piquei-me, emaranhei os cabelos. Não consigo compreender o gosto que muita gente tem em ter a jardinagem como hobby.
E, claro, podar as roseiras é lembrar a Mãe que as plantou e as dispôs como estão no jardim. Desde que Ela morreu já transformei muitas coisas mas nunca toquei nas roseiras. Elas são Ela e são Dela perpetuamente. Hoje ao podar apercebi-me da sua velhice nos caules em troncos grossos como os das videiras. Terão talvez vinte e tal anos e, ainda que eu não queira fazer a soma, Ela já cá não está no meio das roseiras há treze anos. Há treze anos, portanto, que eu mando cuidar das roseiras. Hoje atirei-me a elas. Que dirias Mãe?

9 de janeiro de 2012

Domingo sózinha em casa

Passar o Domingo sózinha em casa dá-me fome. Não é uma fome qualquer. É um desejo de experimentar coisas, não estar quieta e, sobretudo, não usar o Domingo para os trabalhos que me ocupam a semana. Quando me separei dei comigo a preencher tempo na cozinha, a experimentar fazer crepes com natas e farinha porque não havia leite em casa, a fazer "pastas" de toda a espécie e uma sopa de couve roxa que ficou azul e incomestível. Fiz tremendas asneiras e no meio apareceram coisas boas. Como em tudo, habituei-me à situação de sózinha em casa (que já existia no meu não-casamento em versão acompanhada que é, de todas, a pior variante da solidão). A habituação levou-me a experiências mais consistentes, às vezes até para mostrar afecto, em forma culinária, a quem entrava na minha vida ou a quem nela vive. Ontem não tinha porque ou para quem cozinhar. Mas deu-me fome. Fiz sopa de coentros, batatas salteadas, esparguete em molho de tomate com paprica e ervas e pão com paio e queijo de ovelha. Lembrei-me de mim há três anos no novo mundo de descobertas que se me abria em vislumbres de libertação. Fui feliz como nunca pensei ser entre tachos, panelas e a minha cozinha de azulejos azuis escolhidos pela Mãe. E comi, feliz, todos os hidratos de carbono que não comia quando estava presa na infelicidade da minha prisão. Percebo, cada vez mais nitidamente, o bilhete que a Mana me deu quando eu me separei e que, de tanto o passear em bolsos de casacos, já se vai esfarelando: "Somos a soma total das nossas escolhas", Woody Allen. As minhas trouxeram-me a um Domingo de sol e cozinhados.

O pão (na breadmachine):
 Ingredientes
200grs de farinha de cereais integrais
300 grs de farinha de trigo
450ml de água
50ml de azeite
1 chávena de café de paio cortado em cubinhos
1 queijinho de ovelha seco cortado em cubinhos
Orégãos a gosto
1 colher de chá de fermento

Na máquina de pão colocar os ingredientes pela ordem seguinte: água, azeite, farinha, fermento, óregãos. Ligar o programa normal. Quando a máquina apitar no começo do segundo ciclo de amassadura juntar os pedacinhos de queijo e paio. Esperar até sair um pão delicioso.

7 de janeiro de 2012

Já não ria assim há séculos

É tão bom o riso inesperado. Eu ia à espera de um encontro bom, a convivência retomada, a troca de presentes em atraso na coincidência do Dia de Reis. Mas depois houve o riso, fácil e instantâneo, desde a chegada. Ao conduzir de regresso na noite escura e cheia de curvas deste pedaço de campo, trazia a cabeça cheia das novas palavras aprendidas e da memória do riso. Adorei. Têm sido umas semanas pródigas em reencontros de um passado Eu como se não houvesse um interregno em que me esqueci de Mim.
Obrigada.

6 de janeiro de 2012

O nome dito por um estranho

Quinze segundos. O encontro formal não durou mais do que quinze segundos. Segundos suficientes para sentir o aperto de mão com que julgamos logo o nosso interlocutor. Quinze segundos para lhe ouvir dizer o meu nome com a insistência de quem se não quer esquecer. A face contrita e contida que se lhe iluminou. Engraçado como, por vezes, sensações primeiras e imediatas nos podem marcar pela intensidade. Três sílabas bem pronunciadas e fortes. O meu nome da boca de um estranho.

4 de janeiro de 2012

Many beautiful women have been made happy by their own beauty, but no intelligent woman has ever been made happy by her own intelligence. 
                                                       Mignon McLaughlin, The Second Neurotic's Notebook, 1966

Hoje fiquei a saber que não é só no ginásio que me chamam Barbie. Sorri no sorriso Barbie mas pensei com os miolos enquanto me lembrava da Gloria Steinem e da Betty Friedan. Será que algum homem gostaria de ser o Ken?

3 de janeiro de 2012

Chá verde com amizade

Habitualmente escolhemos a Baixa em fim de tarde, Natal à porta e gente na rua. É uma espécie de ritual anual. Houve uma altura em que eram almoços mas confesso que acho os nossos chás de invernos meridionais numa cidade ribeirinha um encontro mais caloroso. Temos sempre imenso para falar e tagarelamos sem fim à vista. Separam-nos gerações mas unem-nos traços de carácter, respeito mútuo, interesses comuns que fazem com que esta amizade quase improvável dure e perdure e me enterneça tanto.
Hoje bebo chá que ela me deu enquanto trabalho nas coisas de que lhe falo nos nossos encontros. De certa forma, ela ajudou a preparar-me para isto. E aqui estou, feliz na lembrança e de coração quente de chá e memória de conversas na Baixa ao cair da tarde.