17 de março de 2014

Sonhei-me morta

Foi um fim-de-semana esquisito. Por um lado, a felicidade enorme de ter o Manel cá em casa e a sensação estonteante e visceral de dar e receber Amor incondicional, os chavões todos em que eu caio na descoberta de que o mundo tem razão quando afirma que nada há de comparável à existência de crianças na nossa vida. Por outro lado, o confronto com a finitude de alguém que, de certa forma se me tornou próximo numa fase muito tardia da vida.
Mal lhe reconheci as feições quando o vi na solidão da cama do hospital. A mente confusa que me tomou pela irmã morta há décadas. E, no entanto, a capacidade de expressão circunvolante que lhe conheci, o falar Português de outras eras, o elaborar sobre o livro e as pesquisas que andava a desenvolver antes deste infeliz episódio. E a solidão. Sempre a solidão.
Não há família que lhe valha. Erigiu muros, literais e figurados, que lhe rodearam a vida e a tornaram inexpugnável. Quero fazer algo e não sei o quê. Sinalizei-me como uma réstia de contacto humano aos serviços sociais do hospital: a loura hiperbólica que apareceu do nada a ver de um "velho" abandonado e confuso. Pessoa difícil. Nem sempre o compreendi. Por vezes precisei de forças titânicas para que nos encontrássemos a meio caminho. Paciência, necessitei de muita. Mas foi bom para mim. Foi, acima de tudo, meu amigo.
Trazia-me baldes de cerejas da terra, e pão caseiro e queijo da serra. Deu-me carradas de lenha com medo que a minha solidão passasse frio. Nunca me cobrou honorários. Jamais me deixou pagar o que quer que fosse porque, imbuído de um cavalheirismo antigo e moribundo, ao pé dele mulher não entra com dinheiro, era assim e ponto final, que a vergonha seria demasiada naquele brio masculino. Também nunca me deu o exterior do passeio e sempre me deu passagem. Outros tempos que chegaram em resquícios ao presente.
Uma vez levou-me a casa. Uma quinta erma ladeada de muros muralhados, sistema de segurança, portão blindado e cães. Os cães que me preocupam nesta hora. Tenho sonhos desesperantes e acordo com o coração em pânico. Ontem vi-me morta mas estava viva na morte e fazia coisas sabendo-me morta. Estava consciente de estar morta e, por isso, assustei-me quando descobri que iria morrer dentro da morte. Acordei sem que o acordar me desse alívio. E agora espero. Espero que um médico desconhecido me telefone com notícias. Espero que a segurança social me contacte sobre o que eu posso fazer. Espero, entre pensamentos de mau-agouro que me infestam os sonhos e vontades humanas de honrar amizades.
 

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