31 de outubro de 2016

Dia 5: Carlsbad Caverns

Houve um momento, no meio da tempestade há uns quilómetros atrás, que pensei não chegar aqui, ao destino deste dia: as Carlsbad Caverns, Parque Nacional e Património UNESCO da Humanidade. Trago expectativa. A minha editora norte-americana é que me deu a dica para aqui vir. Venho.
Subo as Guadalupe Mountains e quando chego lá acima e a vista se perde pela planície sem fim vejo a tempestade que ainda há pouco me engolfou. É gigante mas um nada na imensidão da paisagem.
Bem à americana, a entrada para as cavernas é igual a qualquer entrada para um parque temático: a parafernália de memorabilia alusiva ao colosso que nos espera lá em baixo, os turistas com copos mega XXXL de sodas e colas. E depois, a emprestar seriedade à coisa e a ver se não nos esquecemos que estamos num santuário natural, os avisos aos incautos. E que avisos. Não podemos levar nada lá para baixo, para as cavernas (que são, afinal, um sistema de cavernas interligadas e nem todas visitáveis, apenas se visita a "Show Cave"). O aviso mais repetido é que ninguém, cujos sapatos tenham estado noutra qualquer caverna, em qualquer outra parte do mundo nos últimos dez anos poderá entrar para não perturbar o ecossistema onde vivem morcegos raros. Perguntam-me isso na bilheteira como quem passa a alfândega. Compro o bilhete, visto um casaco, porque lá em baixo vai estar frio, e desço no último elevador do dia, feliz por não ir no meio dos turistas outros e todos.
Assim que saio do elevador arrependo-me até à medula: uma loja de souvenirs e palhaçadas quinquilhantes. Uma Disneylândia subterrânea! Para quem estava com tantas preocupações em manter a inviolabildade da caverna e preservar o habitat... Pois sim! Rio-me a pensar nas nossas Grutas de Mira de Aire e de como os americanos não sabem deixar nada quieto e sossegado como se a Natureza não fosse suficiente para nos encher as medidas. Inspiro fundo e decido-me pelo "long tour". Uma milha caverna dentro. Ainda faço a conta mental para chegar aos cerca de 1,6kms correspondentes. Olho para o relógio e asseguro-me que tenho tempo, enquanto também me pasmo pelo aviso de cautela aos turistas que uma milha caverna adentro é muito e que é preciso cuidado. Sim, a maioria fica-se pela tour mais pequena dentro da "Big Room". Sempre quero ver quão grande é!
Calo-me no instante em que a Disneylândia e os turistas ficam para trás. Resumo-me a uma insignificância ínfima perante o que me rodeia. Milhões, éons de anos, esculpiram as estalactites e estalagmites mais superiores que tudo o que desta natureza os meus olhos já viram. Cascatas inteiras calcificadas pelo labor do Tempo, como congeladas em pedra. Tudo é colossal. Tudo avassalador. Que planeta tão magnífico permite estas formações. Chego a ficar cansada, como que entediada, por a cada passo haver algo mais monumental ou grandioso ou belo do que no passo anterior. A cada curva do percurso novo instante boquiaberto. Num momento ou noutro penso, mas quando é que acaba esta milha? Não aguento ver mais e mais e mais de coisas superlativas que me arrasam na pequenez da minha fisicalidade, da minha idade, da minha existência. Acho que é esse o efeito das cavernas em mim: esmagamento do Ser.
Não há postal, não há bugiganga, não há foto que permita a verdadeira noção da caverna ao vivo. Algures a meio do percurso deixo de tirar fotos. Quero ser só visão e quero que a visão me seja Eu pois só assim levarei comigo as cavernas.
Sinto-me privilegiada por ali ter ido. Sinto-me mais uma a conspurcar com CO2 da respiração de turista aquele lugar sagrado. Irrito-me pelos milhares de estalactictes que tiveram de ser cortadas para que os meus pés ali possam passar. Toco a rocha envolvente e agradeço de olhos fechados. Agradeço ao planeta, aos poderes do Alto, ao que quer que seja que me esteja a escutar e me deu este momento: obrigada.
Quando saio da caverna o dia mudou. Ao longe na planície a tempestade desvaneceu-se. A meus pés contemplo renascida os Estados Unidos da América. Não esquecerei.

27 de outubro de 2016

Dia 5: Tempestade

Há uma tempestade armada à distância. Vejo-a medonha no horizonte onde imagino que a estrada me leva. Adoro tempestades. Chego a persegui-las de propósito. Sonho ir ao Kansas ao "Tornado Alley" em busca de tornados. Até já estive num simulador de tornados. Mas, neste momento, em que vejo o monstro, a adrenalina da excitação mistura-se com o receio da insegurança em que me encontro. Isto não é um simulador onde eu estou confortavelmente presa a uma correia de protecção. Isto não é uma excursão guiada por peritos que nos levam a ver tornados e fenómenos de tempo extremo a distâncias de segurança. Isto é a realidade como não há mais realidade.
Estou a sair do Texas para o Novo México. A estrada é vazia de tudo. A paisagem é solidão. Os campos de petróleo ficaram para trás. Não há gente, não há uma vila, um rancho, um nada e eu sei bem o perigo que é ser-se apanhado por uma destas tempestades de monção. Formam-se em menos de nada e varrem tudo à sua passagem. Não há escapa. Se páro o carro, ela atinge-me parada À espera. Se prossigo, ela atinge-me em andamento. Não há fuga. Sigo.
Abate-se de repente e parece que vai destroçar o carro. Em menos de um segundo, a visibilidade passa a zero. Breu. Os limpa-vidros não dão vazão ao dilúvio no pára-brisas. Não posso parar porque estou na estrada e alguém pode vir contra mim, por trás, em contra-mão, sei lá. O que eu não vejo, os outros também não vêem. Não gosto do medo destes minutos. O carro segue a 10, a 5kms hora. Não sei se estou na estrada se fora dela. Espero o pior. Para mais, há vários quilómetros que nenhum dos telemóveis apanha rede. Segurança zero.
 Sair da parede de água é como emergir para um mundo outro. Sente-se fisicamente sair de sob o peso da água e de dentro da escuridão. Mudança automática e repentina. Alívio imenso e surpresa por não haver um pingo de água no piso da estrada fora da tempestade. É como se uns escassos metros atrás não andasse ali um monstro molhado. Surreal. E sem aviso, um letreiro minúsculo na berma da estrada diz que entrei na Mountain Time Zone. Zonza com a adrenalina que ainda me está bombeada no corpo não sei se adianta ou atrasa a hora. Só me importa que não tive nenhum acidente enquanto andei dentro do bicho. Não sei, ainda, que esta não será nem a última e muito menos a menor das tempestades que se vão atravessar no meu caminho nesta viagem. Para já basta-me saber que atravesso a "state line" e entro no Novo México.

24 de outubro de 2016

Dia 5: Campos de petróleo

Isto de andar fora da estrada batida leva-nos, de quando em vez, àquilo que fica de fora dos postais turísticos. Toda  agente sabe da indústria petrolífera do Texas. Tempos houve até que toda uma geração se agarrava ao écrã para ver o Dallas do glamour e das intrigas de uma família que nadava (e às vezes se afogava) em petróleo. Só que nem a série nem os postais do Texas nos mostram o que se esconde para lá do poder do petróleo.
Nem sequer estou no coração petrolífero do Texas, o Texas de Dallas, a série e a cidade. Aqui no distante Sudoeste do Texas pensava-me a salvo do que imaginava ser o que vejo desenrolar-se diante dos meus olhos: campos e campos de exploração petrolífera, a exploração nua e crua dos recursos, a realidade que ninguém nos diz e de que tão pouco queremos saber quando atestamos o depósito. Para nós, a exploração de petróleo é uma coisa longínqua que não nos diz respeito, que não nos interessa e que achamos nem ter nada a ver connosco.
 Tem vezes que acho que me enganei na estrada. Só há camiões que transportam maquinaria pesada, a própria maquinaria pesada circula na estrada. Não vê um carro, vê-se, isso sim, a indústria que trabalha para o Carro. Não aprecio e incomoda-me o que vejo. Porém, felicidade também é isto: o privilégio de ir para detrás do espelho e ver o que por lá se aloja. Vou seguindo.

20 de outubro de 2016

Dia 5: Fort Davis, Texas

Não queria sair do Texas sem ir a um dos Fortes que criaram o mito da Frontier Land, os fortes que permitiram a expansão do homem europeu por terras outras. Escolho Fort Davis, um dos fortes mais bem preservados e, por conveniência, o que está no meu caminho entre Alpine e o Novo México, o estado para onde quero seguir na viagem.
Pensava os fortes uma coisa mais tosca de paliçadas à volta de casario desalinhado, uma coisa mais à Alamo. Mas, afinal, deparo-me com algo sofisticado, quase moderno. Casas grandes para os oficiais, messe, hospital, correios, uma vila que me lembra as bases militares dos nossos dias. Porém, este é o Fort Davis da última versão. O Fort Davis de quando os índios já não eram os índios do Oeste mas os nativos domesticados nas reservas. Este é o Fort Davis reconstruído por terceira ou quarta vez, o fort Davis que sobreviveu para se tornar lugar de turistas e para turistas. Leio a história e as histórias, vejo o museu e o vídeo com a cronologia do forte. Bem à americana, está bem preservado, tem todas as comodidades para o comum mortal que visita mas, também bem à americana, parece-me mais um pedaço de Disneyland. Vi, está visto. gostei sem ter amado.

17 de outubro de 2016

Dia 4: Rio Grande

Horas depois de entrar no Parque Nacional de Big Bend avisto-o, o Rio Grande. Quando eu era pequena e via os filmes do Velho Oeste, havia sempre dois elementos fulcrais na paisagem, a Sierra Madre e o Rio Grande. Pois ei-lo, este rio lamacento e plácido. Vê-lo-ei mais vezes nesta viagem, nem sempre plácido, nem sempre lamacento. Do outro lado é o México. Inspecciono o que há para lá da fronteira. Vejo jericos a pastar à beira de água, algumas cabras, uma furgoneta de caixa aberta e sei que para lá do rio vive quem quer viver o "American dream".
Imagino o John Wayne a a travessar o rio a vau e sublinho mentalmente a coragem de quem aguentou a desolação e o calor extremo para erigir países neste desterro inóspito. Homens e mulheres de fibra, tão distantes dos meus privilégios de turista que galga a paisagem no conforto do ar condicionado, da estrada asfaltada para turistas verem e promontórios seguros com belos miradouros de onde tirar a foto perfeita. Absorvo o local nos momentos que ali fico e inspiro a solidão da imensidão que me rodeia. Entrecorta-me essa contemplação a descoberta de jóias e figuras de arame, aranhas, cactos em cima de pedregulhos.
São várias. Algum artista ali deixou a sua criação. e em todas um copo ou uma garrafa de plástico com uma ranhura para lá deixarmos o pagamento. Sim, quem aqui deixa a criação desguardada e só já está a viver o "American dream", aquele da liberdade de perseguirmos sonhos na liberdade de o fazermos.

13 de outubro de 2016

Dia 4: Rumo ao Big Bend National Park

Os Parques Nacionais dos Estados Unidos celebram este ano 100 anos e, nesta viagem de costa-a-costa que comecei o ano passado quero ir ao maior número possível. Tal como qualquer turista também me assiste o espírito do coleccionador; ir ao sítio para dizer que fui e vi. Não acho mal nisso quando o fazemos para inspirar o lugar e não apenas para a selfie oca que mostra aos outros, e não a mim, que estive lá. Por privilégio da Vida (haja alguns) já conheço uns quantos parques nacionais mas, em ano de centenário, há um gosto especial em comemorar indo. E vou.
Um dos parques nacionais mais desconhecidos e menos visitados (e para mim mais míticos) é o Big Bend National Park. Uma imensidão colossal longe de tudo. Arranja-se alojamento ou em Alpine, que foi o que fiz, ou em Terlingua, uma coisa minúscula onde já não encontrei sítio para ficar. Uma das emoções de uma roadtrip sem nada marcado é que a pessoa tem a liberdade toda dos dias mas também nunca tem a certeza de onde vai dormir e, por vezes, não dorme exactamente onde tinha pensado.
Mais 130 quilómetros de estrada aberta e solitária e chega-se a Big Bend que quer dizer, literalmente, a grande curva. A curva grande que o Rio Grande faz no seu percurso até ao Golfo do México. Trago a cabeça cheia de filmes de Cowboys do Velho Oeste e havia sempre o Rio Grande. Estou no sítio!
Imenso. Desolado. Voam em círculo abutres e outras aves de rapina. Cactos e espinhosas são o que de vegetal existe. O calor estaciona nos quarentas. Não se vê viv'alma. Percebo que não sejam muitas as pessoas a virem cá: a distância é enorme e, como o México é já ali, há Border Patrols à entrada e saída do parque que nos pedem documentos e identificações e que, imagino, para não-europeus, até devem revistar os carros e bagagens.
Por mim, sinto-me criança no meio de um documentário do David Attenborough e sorrio à vida.

10 de outubro de 2016

Dia 4: Acordar em Alpine, Texas

A viagem foi longuíssima. Deixar San Antonio e ir pernoitar a Alpine implica 580Kms de condução a passar pela zona da Base de Del Rio e roçar a fronteira com o México. Por muito boas intenções de rapidez que se tenha não é possível evitar os controlos fronteiriços dentro do Texas que a Border Patrol instala de tantos em tantos quilómetros. Dirá, naquele inescapável sotaque texano, um dos Patrol Officers quando lhe pergunto o porquê de tanta paragem em tanto posto de controlo:
- Welcome to Southern Texas, M'am...
E, se não é a Border Patrol a única autoridade à solta. Bem como nos filmes, salta-me ao caminho a Traffic Patrol. Passei a 65mph numa zona de 35mph.
- I'll let you off with a warning - oiço do Sheriff num alívio imenso de não ter de ir para a esquadra. A viagem seguirá noite dentro até ao destino.
O hotel é um rancho. Está fechado quando chego. Há um envelope colado com fita-cola no vidro da porta da recepção. Tem o meu nome e a instrução de que encontrarei a chave do quarto debaixo do tapete da porta. Depois da viagem, isto parece-me o céu, ou isso ou o ar rarefeito da altitude a dançar-me no cérebro, afinal estou numa terra que se chama Alpine e onde faz um frio que não faz no Texas.
Acordo na manhã fresca e vejo um gato estendido ao sol em cima do toldo da sala do pequeno-almoço. Sim, está frio e vai estar calor. Afinal, estou no Texas. O profundo, o dos cowboys, das caveiras de vacas e das rodas das carroças. Cheguei ao Far West. E por aqui ficarei nos próximos dias: o far, far West. Acordo ansiosa por aquilo que o dia me possa trazer, num dia que irei ao mais a sul que este far West possa ter...