28 de novembro de 2016

Dia 8: Rio Grande Gorge

Algures a meio caminho entre Santa Fé e o próximo destino há um rio à esquerda da estrada que segue por entre escarpas escavadas há muito. Já estive junto a este rio. Era no Texas e o rio corria sereno por uma planície há muito aplainada levando consigo sedimentos que lhe davam uma cor lamacenta. É o Rio Grande. Aqui no Novo México o rio mesmo parece um rio outro. É azul-esverdeado, tem rápidos e os rafsters seguem felizes por domesticarem o rio.
Páro um pouco para me dar à paisagem. que diferença. No Texas, o Rio Grande é o dos cowboys, da fronteira com o México e da paisagem desolada do Deserto de Chihuahua. Aqui há verde e ravinas e céu espelhado na água. Surpreende-me a diferença. Ignoro, no entanto, que esta não será a última, nem a mais admirável surpresa que o Rio Grande ainda me reserva...

24 de novembro de 2016

Dia 7: Presença nativa

Há qualquer coisa diferente e apaziguadora no ambiente de Santa Fé. Qualquer coisa entre o telúrico e o místico paira no ar. Nas matrículas dos carros do Novo México, o mote é "Land of Enchantment", terra de encanto. É. O Oeste aqui não é o Oeste dos Fortes no Texas ou dos fora-da-lei de Lincoln County mais a sul. O Oeste aqui é o dos primeiros povos. É o Oeste da cultura pueblo, o Oeste da resistência ao Branco e do orgulho no legado antigo da proximidade com a terra.
A língua inglesa-americana tem problemas com o passado e dói-lhe o uso de certas expressões. Native-American, como Afro-American, é daquelas que causam pruridos do politicamente correcto. Agora chamam-lhes First Peoples, os Primeiros Povos, e African-American, Africano-Americanos para evitar o, pelos vistos pejorativo, "Afro". Santa Fé está imbuída do espírito que presta homenagem aos povos autóctones (acho que estou a ser politicamente correcta, right?) e nota-se a sua tentativa de ligar o passado ancestral ao presente. As galerias de arte que abundam na downtown dedicam-se às formas de arte nativas e há uma vasta comunidade de artistas nativo-americanos (parece-me que o Português não tem tantas comichões como o Inglês). Ouve-se música chill out pelas ruas e até o passo das pessoas é descontraído. Agrada-me esta cidade saída de um pós-Woodstock qualquer.
O estuque das casas, das igrejas e demais edifícios imita o adobe ocre das construções dos pueblos à volta. Estamos em território da cultura pueblo, comunidades sedentárias que se dedicavam à agricultura aqui no planalto do Novo México. Até a própria Natureza convoca a este sedentarismo comunitário. Há abundância de água e fontes termais quentes como em Ojo Caliente (transformado em spa de luxo). Fico com a sensação de que gostarei, um dia, de voltar aqui.

21 de novembro de 2016

Dia 7: Há algo em Santa Fé

Nem toda a arte contemporânea me fascina. Há qualquer coisa de grotesco na desproporcionalidade e na força da imaginação para atingir o diferente. Enfim, a cada um a sua opinião. Santa Fé, capital do Novo México, reclama para si o estatuto de outra capital, a da arte (e, como a cada um a sua opinião, Seattle também a reclama). Não é a arte, porém, que aqui me traz se bem que arte esteja literalmente em cada esquina e a cada passo.
Venho aqui como escala num percurso que me vai levar um pouco mais a norte e aqui é o sítio ideal para pernoitar (amanhã vou para um desterro longe de estradas e caminhos) e venho aqui em busca de turquesas e jóias índias. Acho que ainda não disse neste blog mas colecciono jóias e pedras preciosas de todo o mundo com as quais desenho jóias que mando fazer. Não me interessam as fancarias turísticas e os pechisbeques e, por isso, venho aqui às galerias de arte de Santa Fé em busca de jóias de autor e turquesas, pois aqui é o reino delas. Passo horas nessa busca sem que nada me entusiasme. Já os meus brincos entusiasmam os galeristas. Se cedesse compravam-mos só que eu não me desfaço das minhas peças. Sou a sua guardiã para as gerações que já nasceram. Não as possuo e, por isso, não tenho a liberdade de delas me desfazer. Uso-as de empréstimo.
 Recebo um convite para uma inauguração de exposição que vai começar. Ainda me tento mas concluo rapidamente que prefiro a rua-museu-exposição. Não encontro jóias que me cativem e só encontro turquesas de segunda categoria que, obviamente, não me chamam. Aproveito o entardecer molhado para passear nas ruas de uma cidade com casas baixas de estuque a imitar adobe índio, uma cidade de calma excentricidade que destoa com a nossa noção de Oeste. Há aqui uma espiritualidade qualquer diferente e, de repente, lembro-me que deixei o Oeste dos cowboys e entrei no Oeste nativo. Estou curiosa com o que se seguirá.

17 de novembro de 2016

Dia 7: Subir ao pico de Sandia

Os meus padrinhos norte-americanos que, neste momento ainda são só amigos e sê-lo-ão num futuro próximo (aguardem para ver), disseram-me para não perder uma subida de teleférico ao Pico de Sandia quando eu estivesse na zona de Albuquerque. Sigo a dica.
Sandia significa melancia em espanhol. Parece que os conquistadores espanhóis que primeiro ali chegaram olharam para a montanha ao pôr-do-sol e, vendo o encarniçado que lhe emprestava na pedra o ocaso, decidiram chamar-lhe "Sandia". Faço a tradução e concluo que "Sandia" me soa melhor do que "Melancia" ou "Watermelon", nomes pouco inspirados para um portento destes.

Nunca me dei bem com alturas (ia-me afogando no Mar Vermelho a mergulhar nos recifes de coral, não por causa do mar mas porque a água cristalina me dava a sensação de vertigem quando olhava para baixo para os corais, caí de um simulador na NASA só porque vi a Terra a 300kms abaixo de mim e devo ser a única pessoa que caiu do sótão da própria casa só porque olhou para baixo). Detesto teleféricos e nunca apreciei esqui por causa desse pequeno pormenor. Cá de baixo, olho para cima para o que me espera e engulo o medo das alturas. A curiosidade e a superação do medo sempre levaram a melhor e eu sempre me gostei de vencer a mim própria. Entro no teleférico mais longo dos Estados Unidos que me vai levar a uma altitude de 3.163m e tento esquecer-me das vertigens (não ajuda muito porque o condutor do teleférico vai o caminho todo a dizer que todos os dias desmaia alguém naquela ascensão). Fugazmente parece-me estar numa Suíça seca. O panorama é familiarmente alpino e simultaneamente pouco europeu. Aprecio o paradoxo para me abstrair da altura e do facto de que, por muitos sistemas redundantes de segurança que existam naquele teleférico, há só um cabo de aço entre mim e a queda livre.
Chego ao cume da montanha e a meus pés estende-se a vastidão plana do Novo México e do vale que o Rio Grande aplanou ao longo de milhões de anos. Sinto falta de sinónimos que me digam imensidão e vastidão porque há muito que os esgotei nesta viagem aos grandes espaços abertos. A vista panorâmica, fico a saber, apenas vislumbra 9% do território do Novo México, uma insignificância e, transportando-me à escala portuguesa, imagino que visão teríamos se a Serra da Estrela tivesse um cume de vistas desafogadas a três mil e tal metros altitude. Talvez víssemos Portugal inteiro até ao Atlântico e Espanha para lá da Raia.
Do lado menos a pique do cume, uma estância de esqui fechada para o Verão, a Suíça numa latitude meridional e transatlântica. Não me inspira tanto como a vista para a planície do outro lado. Tiro as fotos da praxe, leio os letreiros de "Cuidado com os Ursos" e "Não Dê Comida aos Ursos". Inspiro o ar fresco da montanha e preparo-me para a descida. Segui um bom conselho de um bom amigo e é mais um pedaço do Oeste que levo nos olhos.

14 de novembro de 2016

Dia 6: Antes de Albuquerque, Novo México

Já percebi que as tempestades súbitas vão ser presença nesta viagem pelo Oeste Americano. Em Lincoln County, terras de Billy, the Kid e de Jesse James, havia tempestades no horizonte. Agora, em direcção a Albuquerque, um pouco mais para noroeste de Lincoln County, há tempestades que me rodeiam. A cada curva da estrada penso que vou entrar numa e, a cada curva da estrada, há uma coincidência de sorte qualquer que me evita a tempestade. Vamos ver até quando me dura a sorte...

Lembro-me de, no ano passado, chegar ao Texas e o primeiro sinal de cuidado que vi dizer "Beware of Snakes", cuidado com cobras. Eu vinha da Flórida e dos estados do Golfo do México onde os letreiros diziam "Beware of Gators", cuidado com aligátores. Achei que tinha passado de um perigo reptiliano cheio de dentes para outro mais insidioso. Aqui, no Novo México, o perigo são as cascavéis. Apuro o ouvido a ver se oiço o chocalhar da roca destas serpentes, o chocalhar que me evoca cenas de cowboys mordidos no meio do nada a chuparem o sangue da mordedura a ver se sai o veneno. Também eu estou no meio do nada e sem conhecimentos de sobrevivência face a encontros com serpentes. Por momentos sinto-me o que sou, um espécime da civilização urbana, absolutamente indefeso no meio da vastidão. Milhões de anos de evolução fizeram-me, um exemplar de homo sapiens sapiens modernus e indefesus. A cada dia, a cada pedaço novo nesta jornada, vou-me encontrando com o que está abaixo da superfície de mim. A cada quilómetro feito é mais uma fase de desintoxicação da correria quotidiana e inspiração a plenos pulmões do espaço imenso que aqui me rodeia. Começo a amar o Oeste que me envolve com muitos grandes nadas.
Chego a Albuquerque ao final do dia. A tempestade que me perseguiu e que de mim se apiedou deixou-me chegar a um algures debaixo de telha. Abate-se em fúria nesse crepúsculo que me apanha à chegada ao hotel. É uma tempestade camoniana, a tempestade tonitruante que apanha as caravelas de Vasco da Gama na dobra do Cabo das Tormentas. Há um Adamastor à solta e gravo o som e a imagem do colosso apenas para me dar conta que nenhuma gravação consegue apanhar a voz do Adamastor e os relâmpagos de um Zeus irado. Estou feliz.

10 de novembro de 2016

Dia 6: Rancho e Oeste

Uma das minhas curiosidades no Oeste era ver se os ranchos são a coisa latifundiária imensa que se vê na televisão. São. Milhas e milhas de vastidão, umas vedações quilométricas e, no meio, um portão a dizer qual o rancho que se perde na vista. Imagino ranchos do tamanho de pequenos países. Imagino ranchos do tamanho do Alentejo e, a esta escala, nem seriam dos maiores. Nisto, o contraste com a Velha Europa é abissal. Somos um continente urbanizado. Contamos a superfície das nossas propriedades em hectares e eles falam em milhas quadradas. Têm espaço e dão-se espaço. É possível conduzir horas a fio em território rancheiro sem ver vivalma, só imensidão.
Acho que me desintoxico neste espaço de céu e terra sem fim. Desintoxico-me da urbanidade, do aperto da agenda e da cabeça sempre a mil à hora. Este espaço é-me calma.

7 de novembro de 2016

Dia 6: Lincoln County e Billy, the Kid

Há a ideia, acho, de que o famoso fora-da-lei Billy, the Kid era originário do Velho Oeste. Bem, ele era nova-iorquino e, quando o pai morreu, a mãe rumou ao Oeste, para o Novo México, e levou-o (aprendi isto com o Robert Redford). Para se safar na vida, roubava gado (nada de glamouroso para um fora-da-lei de lenda). Até que um dia teve a sorte (sim, porque foi sorte) de roubar gado ao maior fazendeiro de Lincoln County, John Tunstall, que, compreensivelmente, não achou grande graça à brincadeira. Só que o nosso Billy era muito bom de pistolas e John Tunstall precisava de cowboys que atirassem bem. Contratou-o e os dois afeiçoaram-se um ao outro. A outra sorte que criou a lenda foi que rancheiros invejosos assassinaram John Tunstall, o que enfureceu o nosso querido Billy que, passadinho dos carretos, jurou vingança e assim entrou nos anais da história do Velho Oeste.
Ora, eu também tinha umas ideias do Velho Oeste e eis que me encontro em Lincoln, Novo México. Nos tempos de Billy, the Kid chamavam-lhe uma boomtown, uma cidade em ascensão. Tinha o saloon, os correios, a prisão (na imagem acima), a rua dos duelos ao meio-dia, a igreja, o cercado para o gado. Mas enganem-se, à nossa escala moderna, Lincoln nem aldeia chega a ser. É uma rua e tudo o que se relaciona com as aventuras e desventuras de Billy, the Kid, cabe nuns escassos metros de rua. Dizem que Lincoln ainda está muito parecida com o que era nos finais do século XIX mas, para mim, nada mais é do que um pedaço de postal turístico nada evocativo da imagem que temos estereotipada do Oeste. Lincoln vive de Billy, the Kid. Gostei de ir mas não insisto em regressar.

3 de novembro de 2016

Dia 6: Roswell

Amanheço a poucos quilómetros de Roswell e penso que, apesar de não ser esse um destino que leve para este dia, porque não ir ver o que terá de tão surpreendente, a capital OVNI dos Estados Unidos, vulgo do mundo inteiro? Quantos filmes, quantas séries, quantas teorias alienígenas e quantas mais teorias da conspiração? Não sei mas vou ver por mim.
Antes ainda da cidade começa a piroseira de OVNIS para turista ver à beira da estrada. Não páro. Não me interessa a piroseira. Quem no seu juízo quer tirar uma fotografia ao pé de um pedaço de lata a fingir que é um OVNI?!
Ainda entro na cidade, fiada no Google que me diz que há museu sobre espaço e extraterrestres. Nem saio do carro quando vejo que é tão piroso e tão kitsch quanto todos os homenzinhos verdes e feios que estão por todo o lado nesta cidade que apenas e só vive do facto de se chamar Roswell. Inverto a marcha e saio da cidade. Quero regressar à estrada sem demoras e com urgência. Mais um segundo em Roswell e tenho um ataque qualquer de qualquer coisa qualquer.
Saldo final: nem saí do carro. Passo em branco Roswell e a sua fealdade. Não vim nesta viagem para ver esta América. Ciao!