28 de junho de 2020

22

Mamã, deixei de vir aqui. A vida faz-se de novos projectos, o tempo foge, as responsabilidades aumentam. Mudou muito e mudou pouco desde a última vez que aqui estive. Basicamente, mudei-me para outras paragens digitais, mais na moda, mais imediatas, sei lá. O tempo não cresce e um blogue faz-se de tempo e disponibilidade. Noutros lados, a rapidez compensa o tempo que me escorre fugaz.

2020 está a ser um ano pesado de estranho, fico feliz que cá já não estejas. Dizias-me que eu estava segura quando me aconchegavas os cobertores e prometias que não haveria mais nenhuma guerra, nós que sempre fomos traumatizados de guerra. Acreditei que o mundo era o lugar que me prometias no meu conforto mesmo sabendo das guerras e de todas as inseguranças e terrores que assolam o mundo. Por alguma razão, não me atingiriam, afinal nós estamos na zona confortável do planeta e da vida, os tais 10%.

22 anos depois, aqui estamos nesta estranheza de tudo. O mundo parou, os países fecharam, as pessoas esconderam-se, nada é normal e, na minha vida, nada também é normal. No dia antes de o país fechar despedi-me do Spotty à tardinha. Uma despedida definitiva a um amigo que partilhou o meu caminho durante mais de treze anos. Juntos até ao fim. Não tive tempo de luto ou de me aperceber do sucedido porque no outro dia, toda uma outra realidade amanheceu. Parecia um filme catástrofe com a diferença de ser real e não ter um fim esperado. Ainda não sabemos o fim. O Pai já não é ele. Vive num corpo que parece o dele uma existência sem presente e nunca pensei que tivesse de assistir a esta velhice. No outro dia fugiu do hospital. Tem apenas fugazes lampejos de ser ele. Vive contigo e antes de ti num passado em que só ele vive A Tante Ruth morreu no Verão e agora que quero ir vê-la ao cemitério a Berlim, as fronteiras estão mais fechadas do que durante a Guerra Fria que nos amedrontava e que tu prometias nunca me ir afectar. Não reconheço nada disto, Mutti.

Hoje são 22 anos. Penso neste número, como penso em todos os números a cada ano destes anos: em incredulidade. Morrias-me hoje há 22 anos e hoje eu vou gravar um episódio para o meu canal. Imagina! Eu tenho um canal de programas que filmo à frente da câmara por trás da qual está o marido que me apareceu muito depois de tudo e que tu nunca conheceste. Ele acha-te linda. Como não? Vê as tuas fotos e acha-me parecida contigo. Às vezes já me olho ao espelho e vejo-te. O ar nos olhos que me olham do espelho é o teu. A expressão está cada vez mais tu à medida que me aproximo da tua idade. Tem vezes que acho que não chego lá, que vou partir antes ainda do precoce em que partiste. Quem sou eu para te ultrapassar na idade. Tem outras que acho que me farei velha como a Avó ou mais. Escrevi sobre essa velhice e saiu uma livro que viu a luz do dia e que agora, vê só, vai levar a nossa história além-fronteiras. Como vês, passa-se tudo mesmo que me parece que não se passa nada pois eu estou sempre aqui contigo no coração como se o tempo não existisse pois não é possível que sejam vinte e dois anos.

Nestes últimos tempos, e talvez porque me esteja a aproximar de ti na idade ou no tempo a menos que falta para te reencontrar, tenho pensado no propósito da minha vinda Aqui e nos meus sentimentos. Chego à conclusão que vim para ti e por ti e que tu és o grande amor da minha vida. Se sinto falta ou pena de nunca ter sido mãe? Não, na verdade.Eu sou sou mãe, e, por isso, não tenho nem pena nem falta. Fui tua mãe quando tu precisavas de uma. Fui mãe da tua outra filha quando tu lhe faltaste e sou tia-mãe de duas crianças felizes que se enganam e me chamam mãe de tanto que me amam e de tão habituadas estão À minha existência na sua. Amo todos na minha vida, daria a vida sem pestanejar pelos meus e fá-lo-ia alegre mas tu és o Amor da minha vida, a alma antiga que me acompanha desde antes de mim, que me inspira os livros e me sopra o fôlego dos sentimentos.

Deixei de vir aqui, Mamã, mas por ti regresso sempre...