28 de junho de 2018

20 anos

Como é que já se passou todo este tempo, se ainda ontem aqui estavas? Se vives connosco todos os dias? Como é que qualquer dia, quase metade da minha vida Aqui é feita sem te ter Aqui? Sim, são vinte anos menos que me separam de Ti, mas parece que não se passaram porque ainda te sinto distante e longe desta minha condição de viva.
Estás comigo a toda a hora, em cada instante. Nunca te ausentas do meu pensamento, de pequenas sensações, no dia-a-dia que me enche os dias. Estás sempre num canto qualquer fazendo-te presença subtil, elegante como sempre foste.
Rodeias-nos a vida e nisso é como se nunca tivesses partido desta existência. Até no facto de continuarmos estropiados te sentimos. A dor fantasma do amputado, temo-la. Por isso, continuas Aqui não estando Aqui. És imortal. Vezes, muitas, houve em que pensei na ironia de ser a nossa imortal a primeira a partir. Pensava como é que tinha sido possível ficarmos sem o nosso imortal. Todos podíamos e iríamos partir à Tua frente e, no entanto, todo esse plano nos saiu furado por teres sido tu quem primeiro se foi. Estava enganada. Os imortais são os que partem antes do tempo, antes do resto de nós. Os imortais são os que se sentem para sempre quando deixam de estar Aqui. Claro que és a nossa imortal. Todos os dias vives em nós mais do que qualquer um de nós vive em si.
Eterna e imortal, és isso para mim, tenhas partido há vinte anos ou há cem, ou ontem. Eternamente amar-te-ei, Mãe...

26 de junho de 2018

Herrenchiemsee ou a réplica de Versailles

Há qualquer coisa de desconcertante, de Unheimlich, para usar um vocábulo alemão que melhor defina a estranheza inquietante, quando vemos uma bandeira alemã esvoaçar no alto de um palácio que reconhecemos francês. Há qualquer coisa que não joga.
Lembro-me da sensação que tive da primeira vez que vi Herrenchiemsee, o nome do palácio. Volto a tê-la. À nossa frente uma cópia de Versailles em versão mais nova. Versailles tem o desgaste da idade, a patina, que Herrenchiemsee não possui. Por um lado, é, obviamente, mais novo do que o seu modelo francês, por outro, teve de ser restaurado depois dos bombardeamentos, e, por outro ainda, nunca foi habitado, a não ser nos 10 dias em que Ludwig aqui esteve, e nunca foi acabado porque o rei morreu no Lago Starnberg menos de um ano após aqui ter estado. Nunca se apurou se foi suicídio ou outra coisa qualquer. O que é certo é que Ludwig foi encontrado sem vida nas águas do Starnbergsee. Estava falido, os cofres bávaros exauridos por tanta fantasia construtiva e Herrenchiemsee a obra mais exorbitante e cara. Diz-se que os ministros de Ludwig estavam fartos daquela rêverie louca do rei e que havia discórdia nos círculos do poder e tentativas de chamar o soberano à razão. Quando morreu estava a ser dado como louco e incapaz para governar. Na autópsia não se revelaram indícios de afogamento pois não havia água nos pulmões. Seja como for, Herrenchiemsee é a tonteria última de Ludwig e, porventura, o símbolo da fatalidade que sobre ele caiu.
Aqui até os jardins replicam Versailles. A Sala dos Espelhos, ligeiramente mais comprida do que a original, arrebata. Ao contrário de Versailles, em que as cores estão mais esbatidas pelos anos, aqui temos uma impressão mais precisa do que seria a Sala dos Espelhos na sua juventude. Tudo reluz. Tudo é em excesso e, depois, ao cabo de salas e salas de opulência desregrada, o reverso, a nudez das paredes inacabadas. O tijolo alanrajado oferece a imagem irónica e cruel do que estás por detrás de toda esta gigantesca fachada. Atrás da aparência esconde-se a essência débil. a mim, esta parte inacabada do palácio lembra-me as pirâmides, os mausoléus fúnebres de civilizações desaparecidas. é uma imagem apta para nos relembrar a morte do rei, o abandono do palácio, a interrupção dos planos, a falência. Herrenchiemsee não é Versailles. Ficou sem História e apenas tem uma historieta para contar. É um monumento à caducidade, um fogo-fátuo. É impressionante, sim, mas oco. Falta-lhe alma e, por isso, é apenas um colosso.
Passeamos nos jardins, olhamos o lago ao fundo, o que também acentua a estranheza face a Versailles, e fazemos o percurso de volta até ao cais onde milhares de pessoas esperam o transporte que as leve dali, de regresso a algo mais real.

22 de junho de 2018

Chiemsee

O dia está glorioso. É um daqueles dias em que o sol aviva as cores e a temperatura quente não atinge os picos do desconforto. O verde é verde, pujante de clorofila. O azul, azul, límpido, limpo. Levo o meu marido a Chiemsee, o grande lago na Baviera oriental. À distância, e neste dia de claridade, o lago tem a profundidade do azul que reflecte um céu mais intenso do que o céu. Pontilhados brancos sobre as águas indicam velas de barcos de recreio. É uma imagem alegre por entre o verde envolvente. Nestas alturas é difícil perceber que a Alemanha é um país mega-industrializado. Pergunto-me muitas vezes como é que a Alemanha consegue este equilíbrio entre a industrialização e o idílio campestre, o campo bonito, sereno, pouco descaracterizado por mamarrachos e construção selvagem. Enfim, deixo estes pensamentos, para explicar ao meu marido porque o trago aqui.
O lago, além de magnífico e merecedor de visita só por si, tem dois fenomenais motivos que atraem aqui milhares de turistas todos os dias: Herren Insel (a Ilha dos Homens) e Frauen Insel (a Ilha das Mulheres), nomenclaturas que têm a ver com o facto de que havia um convento para frades numa das ilhas e, apropriadamente, um convento de freiras na outra. Herren Insel, no entanto, tornou-se conhecida ao associar-se à derradeira fantasia do Rei Ludwig II, o tal dos castelos. Foi aqui, na Ilha dos Homens, que Ludwig mandou construir uma réplica de Versailles.
Há vinte e não sei quantos anos, quando aqui vim pela primeira vez, não me lembro que houvesse tanta gente. Lembro-me que estava um dia entre o chuvoso e o soalheiro e que havia muitos turistas. Não me recordo, porém, que fosse esta avalanche. Temos de deixar o carro num dos inúmeros parques de estacionamento que circundam o lago e conseguimos o milagre, num dia destes apinhado de gente, de conseguir um lugar num dos parques mais próximos do cais de onde partem os barcos para as ilhas. Mal acreditamos na sorte.
Compramos bilhetes de ida e volta para a viagem longa, a que inclui as duas ilhas. Entramos no barco que, como nos surpreendemos, leva centenas de pessoas e lá vamos rumo a Herren Insel, onde o barco nos vomita para as bilheteiras do palácio Herrenchiemsee, a megalomania, vertida em construção, de Ludwig II e, provavelmente, a causa da sua morte prematura. Fila para as bilheteiras. Comprta das entradas e depois é seguir floresta dentro os quase dois quilómetros a pé até os nossos olhos se arregalarem com o colosso que emerge por detrás do arvoredo.

19 de junho de 2018

Eichstätt

É noite cerrada quando chegamos. Nos vinte e poucos anos que medeiam desde que aqui estive, mal reconheço esta vila pacata. Mudou imenso, mesmo que se mantenha a mesma. A universidade ocupou tudo e tudo é agora a universidade e da universidade. O carro percorre as ruas devagar até eu me encontrar. Reconheço o edifício, a porta da Orangerie por onde eu passava para ter aulas num curso pomposamente chamado "Literatura Experimental" e que frequentei por ter ganho uma bolsa de estudo.
Não me lembro porque é que escolhi, de entre todas as escolhas possíveis, vir estudar para a Baviera. Os meus pais avisaram-me que não ia perceber a língua, surpreendidos por a minha decisão ser vir tirar um curso a uma universidade chamada "Católica", num estado conhecido pelos desafios linguísticos que põe a quem pensa saber alemão. Vim. Ignorei conselhos paternais, que entendi como paternalistas apenas para ter de morder a língua quando descobri que aquele alemão não era o "meu" alemão e que eu fazia figuras menos tristes se falasse em inglês em vez de embirrar que tinha, porque tinha de falar alemão porque, bem vistas as coisas eu estava no país onde nasci. "Erros meus, má fortuna..." e a natural estupidez teimosa da juventude.
Desafios linguísticos à parte, fui feliz aqui. Fiz muitas amizades, aprendi umas coisas, baldei-me a outras, levei a humilhação de me dizerem, na aula de música, que não havia lugar para um saxofone-alto e que o melhor que eu tinha a fazer era tocar ferrinhos, esse cúmulo-portentoso instrumento do meu calvário por aquelas aulas.
Vinte e tal anos depois trago aqui o meu marido. Conto-lhe a história de Eichstätt, cidade-bispado que ainda se mantém nesse orgulho auto-intitulado Bischoffstadt Eichstätt. Aqui os bispos eram príncipes ou os príncipes eram os bispos. Pouco admira, portanto, que a universidade se chame Universidade Católica de Eichstätt, ou no vernáculo Katholische Universitätt Eichstätt, ultimamente Katholische Universitätt Eichstätt-Ingolstadt (Ingolstadt a sede da Audi).
É uma cidade-jóia, um nenhures repleto de monumentos e agora completamente rendido à universidade que ocupou todas as residências, palácios e todos esses etcs. devidos a uma corte bispal. Não sei porquê vem-me à cabeça os Bórgias e a sua mistura pouco ortodoxa entre o laico e o religioso, o poder clerical ao serviço do poder temporal e vice-versa.
Foi aqui que fiquei a saber que me sinto mais portuguesa do que alemã, que tenho saudades da claridade límpida do Verão meridional face ao amarelado desta luz. Aqui também descobri que tenho de saber que há mar por perto mesmo que eu não o veja ou raramente dele me abeire. Posso sentir-me alemã em muitas coisas, mas sou essencialmente portuguesa. "Essencialmente", advérbio diferente de completamente. Sou um híbrido com tendências mais para um lado do que para o outro. Levei anos a render-me a esta evidência e, nem sempre tenho a certeza de estar pacificada com esta minha identidade de certa forma bífida. Seja como for, há um hino que me arrepia a medula e uma língua que dominei ao ponto de me ser primeira, ainda que não cronologicamente. Tanto o hino, como a língua têm o mesmo nome.
Revejo Eichstätt pela noite dentro mas sem, no entanto, embarcar numa viagem ao passado como noutros locais nesta viagem. Eichstätt foi uma passagem efémera na minha vida. Passou e eu segui em frente. Hoje venho só dizer "olá" e mostrá-la ao meu marido. Deixo a cidade entregue às novas gerações de estudantes que por aqui passam e sigo caminho.
- Queres voltar amanhã com luz do dia? - pergunta-me o meu marido.
- Não.
Não preciso regressar. Vim ver o que queria. Mostrei o que queria. Cumpri aquilo a que vinha. Adeus Eichstätt. Talvez o "adeus" português e não um "Auf Wiedersehen" alemão que implica um "voltar a ver".

15 de junho de 2018

Alpsee

Ludwig II e todos os que acharam que esta região era feérica, tão que aqui se empenharam em construir castelos de encantar, tinham razão. É um local com alma. Carismático. Há aqui qualquer coisa de sereno que sobrevive apesar das hordas de turistas invasores que tudo vêem na superficialidade da selfie e do instante.
Detenho-me na margem do Alpsee a ver os cisnes e a fazer tempo para não ir embora. Os olhos querem o sítio como tantos olhos antes o quiseram. Mesmo à beira do lago alpino há um museu sobre os reis da Baviera. Relembro ao meu marido a eterna questão desta Alemanha retalhada por reinos, ducados, principados e impérios, unificada apenas porque sim, porque a História deu umas voltas colossais aqui. A Baviera era um reino, ainda orgulhoso da sua independência, ainda não absolutamente integrado (alguma vez o será?). Tenho um amigo bávaro em Portugal. Vive entre nós há trinta anos e quando lhe pergunto quando regressará à Alemanha, agora que a idade vai chegando para se retirar das lides da profissão feita carreira, responde que o fará quando a Baviera for independente. Isto diz tudo...
É fim de tarde. As sombras dos Alpes começam a cair, lançando a sua penumbra translúcida sobre a água do lago. Os pés fazem o caminho de regresso ao carro e vou-me despedindo deste espaço mágico a cada passada que dou. Penso em regressos, tal como o regresso que ainda hoje espero fazer a um local onde também me fiz.

12 de junho de 2018

Hohenschwangau

Sem bilhetes para os dois castelos de todas as fantasias de encantar e resumindo-me aos últimos bilhetes para o que, infelizmente, se considera a segunda escolha entre ambos, apenas porque não é o castelo dos delírios mágicos das princesas Disney, subo a ladeira íngreme dos aventureiros que vão a pé ao castelo de Hohenschwangau. Cimeiro, entre os torreões, um cisne. Lembro-me de súbito que "Schwan" é cisne em alemão (tão parecido com o descendente inglês "swan", não?). Até Neuschwanstein tem "cisne" como étimo. A razão não se deve aos devaneios do Rei Ludwig II, normalmente creditado com a construção destes castelos. Já todos existiam. Ele só lhes deu os contornos oníricos e devaneantes que os afamaram. Aqui era a sede dos Cavaleiros de Schwangau, a vila no sopé dos castelos e o cisne o seu símbolo heráldico que, assim segue o mito, provém das lendas dos cavaleiros que buscaram o Santo Graal.
Vamos à história lendária. Lohengrin era filho de Parcifal, sim, o das lendas arturianas, e um dia aparece para salvar a princesa Elsa, filha do rei-morto de Brabant, que vive tormentos na sucessão ao pai. Ora, o valente Lohengrin aparece para salvar a donzela em perigo num barco puxado por um cisne. Luta com os oponentes de Elsa, instaura a princesa no trono e tudo acaba em bem com o cavaleiro a casar com a princesa sob a condição de ela nunca lhe perguntar a sua verdadeira identidade. Não esquecer que ele é um dos Cavaleiros do Graal e aquilo é tudo um bocado hermético aos comuns-mortais como nós. A vida corre bem até, claro, ao dia em que a princesa sucumbe à curiosidade, pergunta-lhe o proibido e ele desaparece até reaparecer mais tarde em versões de eremitas mais velhos que os séculos em episódios hollywoodescos de um Indiana Jones qualquer.
  No interior, Hohenschwangau é como qualquer castelo cujo propósito é ofuscar os sentidos (mas esperem que não é o castelo mais ofuscante que considero existir na Alemanha, mais se seguirá proximamente). Mais deslumbrante são as vistas que as janelas deixam entrar pelos nossos adentro: o Alpsee (o lago dos Alpes), a verdura envolvente das montanhas forradas a floresta, a planície lá em baixo com lagos pontilhados de pequenos pontos brancos de velas de barcos de recreio, estes azuis e verdes verdadeiros, vivos que nos impregnam as imagens na retina. Belo sem histerismo. Belo sereno.
A outra coisa que Hohenschwangau tem é proporcionar os pontos para as melhores imagens do majestosamente elegante Neuschwanstein. Novamente sucumbo ao impulso turístico e encho a máquina fotográfica (que ainda não transitei para os infames smartphones que pensam substituir o prazer da fotografia tirada com o aparelho convencional de tirar fotografias) de fotos de Neuschwanstein. Depois olhos para as hordas que se lhe dirigem e penso que há segundas escolhas que nos des-stressam das primeiras. Venham acabar aqui a Estrada Romântica e depois falamos...

8 de junho de 2018

Os Castelos do Rei Louco: Apoteose da Estrada Romântica

Ei-los.
Apoteótico o final da Estrada Romântica. Um clímax hipersensorial para o sentido da visão e para as sinapses nervosas que se processam no cérebro a formar pensamentos. Grandiosidade. Pasmo boquiaberto. A conjugação perfeita entre o espaço natural e a criação humana. As faldas dos Alpes e estas construções encantadas de contos de fadas: Neuschwanstein e, mais abaixo e mesmo em frente, Hohenschwangau. Surgem perante a vista na primeira linha ocular que separa a planície à volta da elevação repentina das montanhas. Pergunto-me como é que foi possível construir estas belezas de elegância nas escarpas florestadas destas montanhas? Não se trata de fortalezas brutas, construídas com propósitos defensores e atacantes. São palácios quase etéreos na envolvência verde que os abraça. Sintra no seu lugar original.
Deixamos o carro a quilómetros de distância. Estes castelos, ou palácios alcandorados nas alturas, são um magnete para turistas. São o sonho Disney, fora das disneylândias artificiais, que se vem visitar. Pares de noivos, reparo em espanto, vêm aqui de todos os lados trazendo os seus fotógrafos para se deixarem fotografar com estes castelos de conto de fadas por cenário (o preferido é, sem dúvida, Neuschwanstein). Vejo uns noivos asiáticos, talvez japoneses, e fotografo-os sendo fotografados pelo seu fotógrafo, igualmente asiático. Também quero uma foto destas. Quero cristalizar uma imagem de mim e depois uma imagem de mim e do meu marido tendo por detrás o castelo mais famoso e idealizado do mundo. Sucumbo à tentação de ser mais uma turista e não tanto a viajante que, às vezes, penso ser.
Fazemos a pé o caminho até às bilheteiras dos castelos que se encontram mesmo no sopé. No caminho vou verificando as hordas pasmas, como eu, pela felicidade de estarmos aqui. Acho que nem nas pirâmides vi turistas tão felizes (não, as pirâmides são um mau exemplo, ninguém fica realmente feliz nas pirâmides. É calor a mais, decepção a mais, turistas a mais, desorganização a mais. Aqui há serenidade).
Sabia que deveria comprar os bilhetes previamente. Não o fiz para não ser turista. Obviamente que, quando, por fim, chegamos às bilheteiras não há bilhetes para Neuschwanstein, como eu imaginava. Mas não me ralo. Evito o gigantismo da fila que espera o autocarro ou a carruagem para subir até à nesga de montanha onde, periclitante, o castelo parece repousar. Contento-me com a segunda escolha e, por sorte de não sei o quê ou como ou porquê, compro os últimos bilhetes disponíveis para Hohenschwangau. Sorte do "caraças!", debito em bom português num contentamento que me dura apenas uns instantes. A fila para os autocarros e as carruagens que sobem a ladeira até ao castelo é igualmente ciclópica. Não estou para filas e sei que o meu marido as abomina em igual dose. Subimos a pé e a vista... Deuses... Acho que estou em Walhalla.
Chegamos aos portões de Hohenschwangau. Sentamo-nos nuns degraus a absorver a sensação e a observar a turba turista de que fazemos parte. O nosso número de entrada, que aqui, ao contrário de nas pirâmides, é tudo feito com metódica germanidade, só será chamado daqui a duas horas. Seja.

5 de junho de 2018

Schongau

Depois de Augsburg, a Estrada Romântica leva-nos a Landsberg am Lech que visitámos enquanto estivemos estacionados em Starnberg no início desta nossa jornada pelo país que me viu nascer. Passamos esse destino em claro e dirigimo-nos para a parte alpina, e recta final, desta Estrada. Schongau é o próximo destino.
Trata-se de outra das cidadezinhas pitorescas que caracterizam o imaginário da Estrada Romântica: casinhas coloridas e bem-preservadas, uma muralha medieva a abraçar a cidade e o ritmo calmo e descontraído que se respira pelas ruas da cidade. Poucos turistas e não muitos nativos. Digno de nota o facto de se conseguir vislumbrar daqui o Zugspitze, bem ao fundo entre as nuvens, o ponto mais elevado da Alemanha a uma altitude de 2.962 metros.
Schongau fica, digamos assim, no meio do nada. Não é dos pólos mais atractivos da Estrada Romântica e, sejamos francos, para quem estiver com pressa no caminho é uma das etapas "saltáveis". No entanto, para quem gostar de curiosidades é aqui que está sepultado, num túmulo de vidro à vista de todos, o desgraçado do São Constante, um eremita e mártir irlandês que acabou num relicário aqui nestes confins. A igreja com semelhante "artefacto" merece uma visita pelo espectáculo de magnificência barroca que mostra. É só procurar na Marienplatz a igreja Maria Himmelfahrt e ficar a contemplar o pensamento de como nas mais remotas lonjuras surgem obras destas... Impressionante, ainda que impressionante não seja, porventura, o adjectivo mais apropriado para descrever esta espécie de anti-clímax antes da apoteose que encerra a Estrada Romântica. É pena para Schongau que tenha de viver ensombrado pelos Alpes do horizonte, pelas cidades-jóia que existem antes de aqui chegarmos e pela majestade que se aloja uns quilómetros mais à frente. Sim, é uma pena para Schongau.

2 de junho de 2018

Augsburg: Ecumenismo e a Reforma

Vir a Augsburg, além de um regalo para a vista e uma delícia para os ouvidos (de recomendar uma paragem na Fugger Platz em dia de sol: ao centro uma imponente estátua do Fugger, como não poderia deixar de ser, com a legenda "Patrono do Conhecimento", e a seus pés músicos, performers, espectáculos de rua dignos de salão nobre e das Belas-Artes), é, também, um encontro com uma importante faceta da denominada cultura Ocidental, a Reforma.
Em Augsburg, como por toda a Alemanha, convivem em paz as mais diversas denominações religiosas mas detenho-me, hoje, nas cristãs. Por toda a cidade erguem-se monumentos às mais várias confissões do Homo Christianus. Templos católicos convivem com a diversidade protestante. Entro em diversos. Como de hábito aprecio a luminosidade e leveza das igrejas católicas destas paragens. Aqui não reina a ênfase na Via Dolorosa e martirizada do Cristo como vemos no nosso Meridião. Aqui não é tanto o Cristo que impera, é mais o Jesus e isso agrada-me. Não percebo o culto da dor e do martírio. Jesus não é o crucificado, é o Salvador e é isso que me determina a visão religiosa. Causam-me pavor as igrejas em Espanha com os seus Cristos contorcidos em esgares agonizantes. Percebo uma antiga amiga da minha Mãe. Era muçulmana e um dia a Mãe quis mostrar-lhe uma das "nossas" igrejas. A amiga da minha Mãe saiu a correr aos brados de que estava um homem morto na igreja. Apavorou-se com o homem crucificado em tamanho real. Entendo. A mim também me causa confusão. Isto tudo para dizer que o horror mórbido está, por aqui, tão ausente das igrejas católicas como das protestantes que, por ortodoxia, são menos dadas à representação imagética do que as católicas.
Ora, para quem se detenha nestas considerações, vir a Augsburg implica não deixar para trás uma visita à Igreja de Santa Ana, mesmo atrás da Fugger Platz. Em primeiro lugar, é aqui que estão sepultados os Fugger, esses benfeitores da cidade. Em segundo lugar, foi aqui que ficou Martinho Lutero em 1518 durante o interrogatório perante o legado papal que lhe pediu para reverter caminho e submeter-se ao Papa. Na altura, a igreja estava consagrada à Ordem Carmelita porque, não esqueçamos, ainda não havia protestantismo nem Lutero tinha ganas de fundar qualquer novo credo. Vir aqui é entrar nas páginas dos livros de História e sentir o que aconteceu de tal fulgor que abalou a Civilização Ocidental com as consequências que lhe conhecemos.