Não há, de facto, língua tão propensa ao eufemismo como o Português.
A maneira evasiva como as coisas se dizem nesta língua. Mas depois, a maneira penosamente sentimental com que as coisas se tratam.
O sofrimento não tem de ser vivido com eufemismos: faleceu, foi a sepultar... Para mim é tudo mais directo: O João morreu, ponto final. Enterrámos o João, ponto final. Porque é que temos de mascarar o imascarável?
E depois lá vem o carregamento penoso do vector emocional: partiu para sempre, já não está cá, nunca mais virá e toda a lamúria que acompanha estas verbalizações. Mas que falta de esperança esta num país Católico? Que desespero tão finito? A Vida será assim tão estanque? Não vivem os mortos infinitamente? Não estão, por acaso, sempre connosco?
Esta é a primeira Morte realmente "à portuguesa" que estou a viver. Entrou-me porta dentro na sexta-feira. Inesperada, surpreendente. E surpreendente o culto da Morte que tenho presenciado. O arrastar do sofrimento, o querer prolongar a dor. Não consigo explicar isto. O meu catolicismo não explica isto. Porquê a insistência na pena? Na dor? No horror da Morte? Na crueldade do destino?
Ontem acordei com um pensamento: o luto já teve a sua hora. Seguir em frente. O choro fica cá dentro no coração. A esperança continua. A Vida continua. Se nos abandonamos à Morte, à Dor, elas vencerão. Mas é difícil explicar isto num contexto luso em que os mortos carregam os vivos.
Eu acho os mortos tão leves, tão libertos, tão pacíficos na sua beatitude. Tão superiores a nós. Aqui tem-se medo dos mortos, insiste-se no seu pavor, mostra-se um cadáver publicamente (esta para mim é a mais horripilante das minhas surpresas últimas). Quando a Mãe morreu, só eu a vi assim, em privado, em silêncio, as palavras eram para ela. Não há lembranças nenhumas dela sem ser em vida, naquela vida alegre e cheia de cor que ela tinha. Ninguém terá jamais a Mãe morta no pensamento.
O João permanece um cadáver. Não é injusto? Não é horrível lembrarmo-nos de um corpo amarelo sem vida, sem dignidade, um farrapo corporal? Ali, exposto, abandonado à curiosidade mórbida. Não consegui evitar esta indignidade. Não gosto deste espírito que cultiva a Morte e a arvora em Grande Dama.
Este é o último post da morbidez. Estou em luto: privado, interior, individual, meu, sem eufemismos. Estou em cura: privada, interior, individual, minha, sem eufemismos. Julgar-me-ão por retirar a minha dor do espaço público? Por seguir em frente sem abandonos e olhares para trás?
P.S. - Fostes todos outra das minhas grandes surpresas últimas. Desta vez, uma imensa surpresa do Bem, das coisas que, afinal, construímos sem nos darmos conta e que enriquecem a Vida e a fazem, para o bem e para o mal, fascinante e extraordinária. Obrigada!
29 comentários:
... tu sabes ...
... não preciso dizer ...
... "semper fidelis" ...
Blue,
Sure I'm back girl! Am I a girl to fight back pain or what?!
Quinn,
Don't I know that...
Blonde...
Já te disse o que queria...
Falta o que não queria...
fica para depois
Os gestos dos latinos são alargados, exuberantes… falta-nos as cores de outras paragens tropicais, mas encaramos a vida teatralizando-a. Vivemos as emoções para além das emoções, somos nós a encenar a nossa dor, para que ela não tome conta de nós! Com o tempo o actor confunde-se no papel e hoje somos os rituais que à força de serem representados vezes sem conta se tornam na vida tal como ela é.
São os latinos enchendo a sua dor de culto.
-Os latinos não valorizam aquilo que deveriam, o legado dos que partem!
Dear Indy,
Suspense is killing me...
Carol,
Absolutely right: the dead will always live in us.
Antonio,
Passo bem sem as teatralizações latinas. Que raio é que a dor tem de tão especial e solene que tem de ser cultuada? É nisto que certos genes e costelas que por aqui flutuam se agitam de horror! A dor é privada, silenciosa. Dói que se farta. A cura é, de facto, mero paliativo, mas bolas, não é preciso a ênfase! E é isso que eu tenho visto nestes últimos dias: o querer a dor, o amor à dor.
Antonio de Almeida,
Permita-me a liberdade de subscrever e assinar por baixo.
querida blondie, prometi e cumpro...
Falei já da minha avó... digamos que não aceito bem a morte velada, aquela que se celebra na dor profunda, no luto escuro e na vigilia do cadáver... Ver o corpo de alguém que morreu extravasa-me o sofrimento. Por essa razão passei sem o fazer até à idade adulta. Morte era-me conhecida, mas a visão do seu rosto... bem... fugira-lhe sempre...
Como em todas as ocasiões da minha vida, a dor embate sempre numa parede de riso em mim. A morte não foi excepção e quando morreu a avó foi o riso e o sorriso franco, aberto, gargalhoso que me acompanhou. A família estava francamente preocupada comigo. como sempre encolhi os ombros e virei costas às preocupações alheias. Estava a superar a dor melhor do que pensava. Aos demais parecia que eu era nada menos que uma insensível e o luto - o negro carregado que todos usavam - em mim não era visível.
Anos mais tarde um outro ente querido jazia praticamente inconsciente numa cama de hospital, implorando que o deixassem partir. A filha já tinha ido, sobravam-lhe a esposa e o neto. O neto não queria presenciar aquela dor, mandava-me a mim, grávida e a esposa recusava-se a acompanhá-lo nos ultimos dias. Eu revoltava-me contra aquele culto da propria dor, esquecendo a de quem mais interessava. Engolia as lágrimas e o sofrimento - se alguma vez tive vontade de chamar avô a alguém foi Àquele homem. Fui eu a última a vê-lo, a ouvi-lo e as suas ultimas palavras foram para mim - "tu é que devias ser a minha neta".
Não vou a cemitérios, não quero ser enterrada, já fiz todos prometerem que serei cremada e as cinzas espalhadas ao vento que me levará para onde quiser... não quero ficar presa a lado nenhum...
Naquela noite a minha mãe, preocupada com a minha sanidade mental, obrigou-me a encarar a realidade. Tinha de ver, tinha de olhar a morte no rosto...
Acreditei... vi-a ali, lívida, com uma expressão de paz como nunca a tinha visto, como se fosse uma boneca de cera... Só então chorei... chorei durante dias... embrenhei-me naquela dor, fiquei submersa nela até que a vi novamente num sonho. Não estava morta, não estava com uma expressão de paz... sorria-me, dizia-me que estava onde sempre quisera estar.
Eu ouvi e soltei-me da sua morte. A luz estava À minha frente.
Não olhei mais vez nenhuma a morte nos olhos. Voltarei a encará-la quando for a minha vez. Nessa altura vou encará-la de frente...até lá miro-a de longe, com respeito.
Não, não sou lusitana nesse teatro da dor. Não acredito em cemitérios, nem acredito nas almas presas aos corpos debaixo de uma pilha de terra e pedras e flores. Assim sigo vivendo, assim levo comigo os meus mortos e a minha dor, bem presa lá ao fundo, onde a posso ver à distância e chamá-la apenas quando estou só...
Talvez cada povo exorcize a sua dor conforme aprendeu... seguimos a religião dos nossos pais, vivemos a sua dor… Todos os povos têm a sua forma de viver “o pecado original”.
É cultural, de outra forma parece mal, reveste-se de insensibilidade. Mas o que importa é a autenticidade, em tudo e talvez sobretudo no luto, privado ou não.
Apenas a autenticidade deveria regular o bom gosto.
É todo um ritual que teatraliza toda aquela dor, onde supostamente todos têm que ter um papel e agirem conforme o guião da suposta "tradição", um prolongar da dor.
Nós temos de seguir em frente, anular essa dor, transforma-la em saudade e recordar as coisas boas, sentido aquele aperto no coração mas sempre acreditando que ainda estão ao nosso lado, em que forma não interessa, apenas interessa que os sentimos ali...
O que parece que ninguém se lembra é que devemos cultuar a vida e não a morte.
O problema é que enquanto o pessoal está vivo anda sempre de passo adiantedo e não vive como deve de ser. Não aproveita o tempo com os amigos e a familia e depois quando eles "partem" em geral, o remorso aparece.
Por isso eu dou bstante valor à vida e tento aproveita-la com quem me faz bem.
Para que depois, se essa pessoa "partir", somente fique com lembranças boas e com nehum sentimento negativo sobre ela...
Bjs
Não sei o que fazer para te animar.
Talvez contando-te umas coisas extra sobre mim e que toquem à sua maneira o teu momento.
Quando o meu Amado Amigo Castro, pai da Loira de que te falei, morreu, foi um desgosto inominável para mim e para os muitos amigos que o amavam, por muito esperável, devido à sua Insuficiência Hepática Grave por alcoolismo.
A tal Loira, Filha dele, não teve condições de seguir os trâmites da sociais da sua Perda: nem velório, nem missa nem nada, mas foi sensível a essa percepção de Vida e Presença do seu Pai, mal transitou na sua Páscoa, tal como eu senti essa Paz Branca e Confiada de Céu-Para-Ele.
Fui eu, como marido-no-papel, e a sua férrea mãe, uma guerreira da sobrevivência com a sua Insuficiência Renal, quem estive ali, na guerra social. O Castro era uma figura pública local e regional.
Agora imagina-me ali, assumindo tudo por ela, suportando as centenas de pessoas que me buscavam para falar dele e perguntar por ela.
Uma dessas pessoas, uma mulher, irrompeu pelo velório com tal pranto (era uma loira gorda e espectacular da mesma geração dele) tão chorosa e gritando tanto que, ao aproximar-se, cambaleando, demasiado do caixão para ficar aos pés do cadáver, o derrubou, obrigando o pessoal da mortuária a um trabalhão compondo tudo de novo, flores, corpo-presente, velas, tudo.
No meio de tanta dor, acredita todos nos rimos imenso ali mesmo. Foi insólito.
Mais tarde, na missa, incumbiram-me de fazer uma leitura, a mim, que por tantos e tantos anos lera todos os fins de semana na minha igreja. Imagina lá o que é descozer-me todo, ler a chorar convulsivamente, salvo erro um excerto de uma carta de S. João Evangelista, mas ler tudo até ao fim e perante centenas de pessoas!
Aquele homem era meu Amigo. Com 63 anos, maestro ímpar na arte coral, foi um homem tolerante e sensível com quem toda a minha vida empatizei do mais fundo de mim e que sempre empatizou comigo e tanto conversámos sempre.
Deus conduziu-me até aos seus dois últimos anos de vida quando namorei e 'casei', pelo menos formalmente, com a filha, como ele sempre sonhara e mo admitiu.
Vivo a Fé no plano da Vida, da Ressurreição vivida desde já e Esperada como a Grande Resposta Divina ao cortejo de Dor e Lágrimas que tem sido a Saga Humana.
Vivo do vigor do Amor Divino, como esperiência Arrebatadora e Forte e do Espírito Santo como O que nos vivifica e é palpável na nossa Carne Aqui e Agora.
Contesto esse morbilismo de que te queixas, Blonde.
O meu silêncio até agora, como teu amigo, foi um silêncio não de omissão, mas de respeito e de compaixão=simpatia: SOFRER COM.
Sofro contigo, por isso, ai de ti se me interpretas mal! Levas!
Abraço Forte Beijoso
PALAVROSSAVRVS REX
Lembra-te disto:
Dear Antonio,
... and I'm a woman of exquisite taste!
Dear Indy,
Whatever happens to my body after I'm dead I don't care, I won't be there. Just don't display my remains in any public place and don't let my family and friends contemplate my mortality.
Like you I'm not Lusitanian in this respect.
Dear Tiago,
Esse teu último parágrafo é que eu acho que é difícil fazer ver aos portugueses. Eles preferem o primeiro.
Dear Carol,
In my case I repeat the verses of Dylan Thomas: "And death shall have no dominion". This is what I truly believe in. Pain, of course, will be with us forever, but we can never show pain we feel it hurting us.
Dear Nuno,
Como eu te entendo. Acho que acertaste em cheio. As pessoas tomam tudo por garantido e depois do desastre, da catástrofe choram por egoísmo e expiação. Sabes que mais? Apetece-me dizer: Bem feita! Dessem valor ao que tinham antes de o perderem que agora não precisavam expiar a dor ad infinito.
Dear Josh,
E eras capaz de me dar?! Ai de ti! Sabes lá o que são os meus 50 quilitos!
Eu também fui fazer a leitura. Escolhi uma das Cartas de Paulo aos Romanos porque S. Paulo é forte e dá-nos sempre muito que pensar. E ele não é nada lamechas e eu detesto lamechice. E o Salmo foi o meu favorito: o Bom Pastor.
(Bem, tu com loiras é para esquecer criatura de Deus!) Olha, e a ver se desengomas lá o teu sítio que eu levo horas a abrir aquilo antes de crashar tudo!
An award????!!!
Gosh Carol, I don't even know how to get one! Do I deserve an award? Man...
Ponto Final.
E venha outra sebenta que há outras coisas a escrever.
Dear Ponto Final,
"Sebenta"?! Eu escrevo tudo, agora essa da sebenta nem aos meus alunos. A malta agora é mais powerpoints e outras coisas que tal;)
Não suporto nestas alturas os/as hipócritas que durante a vida de determinada pessoa nunca tiveram para com ela um gesto de boa vontade ,um gesto de amizade ,um gesto de respeito, mas porque nesta peça de teatro o guião manda chorar ,pôr um ar pasaroso elas assumem esse triste papel,talvez seja por isto que raramente vou a um velório ,para não ter que me cruzar com esta gente .Quando chegar a minha vêz Divirtam-se e não chorem será a melhor forma de mostrar que gostaram de mim.
JOY
Thanks Darling Carol!
Joy,
É mesmo isso. Hipocrisia danada! Luto falso desgraçado! Não quero carpideiras quando eu morrer!
Uazeka, uafu, uatono kixinji.
Kala mutu, ni mutu ué
Xaxuaxo
Os copos de estanho eram usados para beber cerveja ou whisky.
Essa combinação, às vezes, deixava o indivíduo "no chão" (numa espécie de ‘narcolepsia’, induzida pela mistura da bebida alcoólica com óxido de estanho).
Alguém poderia pensar que ele estivesse morto e, assim, preparavam o enterro.
O corpo era, então, colocado sobre a mesa da cozinha por alguns dias e a família ficava em volta, em vigília, comendo, bebendo e esperando para ver se o morto acordava ou não.
Daí surgiu o velório, que é a vigília junto ao caixão.
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