Quando comecei a desenvolver os meus estudos académicos sobre alteridade (as questões do Outro) não o fiz ciente de que eu também incarno a personagem do Outro. Contudo, a verdade é que, de modo mais ou menos consciente, tenho vivido sempre num limbo entre o pertencer ao mundo do Nós e do Eles sem saber exactamente onde me enquadro. Já ouvi frases do estilo: "Volta para a tua terra!" que, curiosamente, foram proferidas neste país de brandíssimos costumes e não no país do Norte onde nasci e que vive com o estigma histórico da Ausländerfeindigkeit, da qual, juro, nunca me apercebi e nunca entendi.
Gosto de Portugal, escolhi a portugalidade quando tive de declinar uma nacionalidade, apesar do estranho que foi ter voltado, dois anos depois, como estrangeira para a outra pátria. Lá está: a Outra, sempre a personagem que não é de um sítio nem de outro. Como não sou Eu nem Ela, costumo dar-me à distanciação do observador, uma maneira de apreender a realidade que, tantas vezes me confunde e surpreende. Os portugueses, entre os quais eu me incluo de modo sui generis, constituem, para mim, um manancial infindo da perplexidade da descoberta permanente. Amo-os por isso. E quando sou Ela aprecio vê-los na sua originalidade inequívoca de povo pendente entre uma identidade mediterrânica e outra atlântica, ou seja, um povo, tal como eu, preso na indefinição entre dois pólos irresistíveis, sem que um ganhe jamais primazia sobre o outro.
Nas poucas vezes que viajo com ou entre portugueses sinto-me a pessoa mais deslocada do mundo. Constranjo-me umas vezes, rio com vontade outras tantas e maravilho-me no resto. Viajar é, para os portugueses, um hábito recente advindo do fim de um sistema político opressivo, da melhoria das condições de vida e da massificação do turismo. Por conseguinte, viajar é, ainda, uma novidade. Uns viajam de modo empertigado, outros em completa basbaquice e acarneiramento, batem as palmas quando os aviões aterram, levam quinhentas tralhas atrás, não seguem instruções e têm sempre receio de não serem os primeiros em qualquer fila que se lhes atravesse no percurso.
Desta última viagem guardo dois episódios fantásticos. O primeiro ocorreu no controlo de passaportes à chegada ao país de destino. Duas super-tias com madeixas loiras, muito anel nos dedos e calças de ganga dentro das botas, estavam muito enfastiadas com "estas classes médias-baixas...". Fiquei parva! Foi assim mesmo com estas palavras infelizes que as duas se referiam aos compatriotas que com elas tinham tido a desdita de viajar (eu incluída, naturalmente). Pensei logo: "Ora aqui estão os portugueses no seu melhor", na sua mesquinhez que tanto me irrita. É que um português deste tipo não gosta que os outros usufruam de privilégios que ele acha sacrossantos apenas para a sua pessoa. Portanto, as boas das tias quarentonas estavam entre a plebe e, qu'horror!, que coisa tão vexatória.
O segundo episódio fez-me lembrar como gosto dos portugueses. Embarque de regresso. Através de um altifalante uma hospedeira de terra indica pausadamente: "Please remain seated, boarding will be done sequentially". Logo as hordas se levantaram e congestionaram a entrada da manga, afogaram a criatura de altifalante na mão e o embarque fez-se à portuguesa por entre "com licenças" e abram alas. Confesso que me detive na apreensão da cena. Sim, estava de regresso a casa, à minha casa, pátria da minha duplicidade, mas minha.
28 comentários:
Também eu, mais novo, me dediquei ao estudo da alteridade, não de uma forma académica, mas sim sistémica e pela noite a dentro. E também eu me senti muitas das vezes no limbo, embora por razões diferentes das invocadas no texto, mais fruto do excesso de consumo de certas bebidas. Mas isso agora não interessa nada.
Gostei imenso deste retrato que fizeste dos portugueses. Nós somos mesmo assim e por causa dessa classe média baixa, também eu sou forçado a meter-me entre os primeiros no acesso ao avião. Com a quantidade de bagagem que as pessoas transportam lá para dentro, se não estou entre os primeiros onde meto eu o meu trolley? Se esta classe média baixa não viajasse tanto, eu não teria esse problema.
Pronto, BlastingBlondie, o teu relato está naquela frequência-de-alma em que me revejo inteiramente. Alter-egoizas-me, sabias?! Ao ponto de sentir que se não tivesses sido tu a escrevê-lo, teria sido eu certamente porque o tom traz aquele travo maravilhosamente corrosivo e desinfectante da ironia.
Quando fui ao Brasil também apreciei, de regresso, a inundação barafundística e em tropel do aparelho pelos nossos bronseados compatriotas, por vezes tão donos de toda a gente brasileira ('conhecer bem' é, por assim dizer para eles-nós, ser 'donos de' e o contrário): tão excessivos e ao mesmo tempo tão excitados do privilégio delicioso/aflitivo de voar/viajar. Tão ciosos de esse privilégio intransmissível também.
Há um tipo de conversa portuguesa entre desconhecidos durante os vôos que me parece um inteiro sistema de pensamento nefelibata, holístico e ecuménico ainda pouco tipificado e pouco estudado.
Aquelas conversas em voz alta portuguesas suplantando o zunido dos motores, a cada gargalhada narrativa de gajas e gays na Praia; aquele azedume postado em outras tantas super-tias desdenhando de tudo: da comida, das hospedeiras, do travesseiro, das casas de banho ocupadas, do aparente primitivismo do concidadãos mais exuberantes no assento ao lado; aquelas crianças dozeaninas em desalinho e desobediência nos cintos colocados e em tudo que nenhuma voz disciplina, humilhando o pessoal de bordo brasileiro com caprichos recheados com não-há-pachorra.
Estranhos a nós mesmos, quando nos vemos ao vivo, bate-nos, no entanto, sermos esse mesmo organismo desorganizadamente coerente e homogéneo.
Quanto às 'tuas' super-tias, Deus lhes perdoe a caganeira civilizacional despreziva da Alteridade e Homofóbica, em sentido amplo (Fobia do Igual, igual na língua, na história, na toponímia, na idiossincrasia). Até parecem imortais!
Tens toda a razão, Linda! O irónico 'Qu'horror' delas é teu e meu concreto 'Qu'horror' para elas!!!!
PALAVROSSAVRVS REX
mas é nisso que somos bons, no tudo à pinha, o eu saio primeiro, que se lixe as instruções, toca a andar, eu passo bem e se o meu garrafão de 5 litros de vinho passar melhor, sim porque um português tem por obrigação levar sempre consigo o respectivo garrafão, faz parte da tradição.
Claro que também temos o oposto, onde o senhor actor Rogério Samora, quer dizer um gajo que se diz actor, esteve a fazer umas gravações na India e quando embarcou no avião de regresso e perante tantos cidadão nacionais, cá do sitio avançou com um "Tantos Portugueses, que nojo.", o azar é que foi ouvido pro vários jornalistas, mentalidade no mínimo estúpidas e com manias de superioridade, mal por mal prefiro o do garrafão de baixo do braço.
Eu não sei se me dediquei ao estudo da alteridade em novo ou mesmo agora que estou a entrar num outro circuito, o da meia idade.
Mas sei o quão agradado fico em poder andar por aí em viagem liberto da cruz e da sina de ser português. E da companhia, quase sempre pindérica, de concidadãos.
Chamem-me o que quiserem que me estou borrifando, mas eu adoro mesmo é andar a vadiar sem ter um português num raio de uns largos, larguíssimos até, metros.
É que quase não se tem alternativa.
Ora se dá com uns nojos armados em versão electropop de gente fina metida a besta, que ostenta cabedais, carcanhóis e quejandos mas, tal como Natália Correia antecipava, se dá ares de públicas virtudes e carrega oceanos de vícios privados só que a estes dá-se uns nomes finos para apodar os mesmos pecadilhos que as gentes normais têm...
Ora se topa com uns seres, digamos assim, muito naquela de mosttar que estão "in", que são bem, que usam gravata mas mal abrem a boca mostram que são uns despenteados mentais!
Safa. Não há quem aguente.
Ou é a pilhéria de se querer ser a primeira besta a entrar em qualquer lado, a cavalgadura que, qual chico esperto, se arma em anormal e passa à frente dos que respeitam a fila para a entrada, o idiota que tem no abanar o traseiro e espreitar as glândulas mamárias da vizinha de praia o supra sumo de uma férias bem passadas...
Não se pode.
Deixai passar o António com o seu trolley (espero, sinceramente, que ao menos seja da Vuitton ou da Hermés), livrai-nos das conversas abaixo de cão que o pobre do Joshua teve de aturar e não me apareçam com o raio do garrafão de cinco litros do Tiago... não há pachorra. Que ferro!
POST SCRIPTUM Vós bem disfarçais, mas escusais de me interrogar mais sobre a identidade daquela "bomba"!
-É um fartote de riso ouvir algumas tias, e tios naturalmente, que se têm o azar de escorregar, e ficar virados do avesso, aquilo nos bolsos apenas está cheio de ar, e muitos dos passageiros desse voo, quiçá até as tias, lá para Dezembro talvez acabem de pagar a última prestação da mesma. São os mesmos que fazem dieta, por isso em casa desistiram de cozinhar, mas estão sempre prontos para qualquer cocktail onde sirvam rissóis e croquetes, e quando vão a casa de amigos, bem, uma vez não são vezes, e lá se vai a "dieta". Bater palmas na aterragem não é mau, já é um upgrade dos que em tempos "davam milho" ao avião, eh,eh. Sou quase sempre o último nestas coisas, e nunca fiquei em terra, como também não me identifico com os valores desta sociedade light, não é mania, mas passam-me realmente ao lado estas coisas, ah, e se tiver oportunidade evito a TAP, o ALLgarve, pelo menos no Verão, Marinas e passeios marítimos, centros comerciais e afins.
Dear Antonio,
Always the cracker!
Dear Josh,
Why signing Palavrosaurus when you were being Joshua?
Wonderful description of idiot Portuguese tourists? E porque raio comecei a escrever em Inglês?!
Adiante, essa do alter-ego nunca me tinham dito, confesso! E mais confesso que achei estupenda. Ainda bem que não sou só eu a pensar que o português em viagem é um prodígio da natureza;)
Tiago dear,
Pois para mim, nem garrafões nem Rogérios Samoras. É tudo de uma tacanhez aflitiva. O "pobinho" no seu melhor!
Dearest Quinn,
O que vale é que não sou eu a verbalizar esse teu asco ao português viajante. É que se fosse, lá me mandavam de volta para a minha terra! A tal que era mas não é e nunca foi bem. Mas olha, que não saia daqui, até subscrevo o que dizes (bem, alguém me vai trucidar por certo)
A minha identidade? Blondewithaphd, não se está mesmo a ver?
Ó kido Antonio de Almeida,
Eu, sei lá, não posso com as tias nem à distância, tá a ver? São do mais pindérico e patético que pode haver. You said Allgarve? Where exactly is that?
Concordo, corroboro e subscrevo tudo o que diz!
Querida Blue,
Ser estrangeiro também é uma atitude, uma disposição mental de quem não se enquadra. Sim, de facto, a distanciação confere-nos uma tremenda liberdade, também um certo isolamento, mas nesse isolamento temos o poder de ver sem cortinas de fumo.
E explicar às hordas que o avião não parte sem nós e que o nosso lugarzinho é sempre nosso no matter what?
Olá Blonde ,
Não há muito para comentar ,fazes um retrato perfeito de muita desta malta que gosta de se armar ,especialmente esses tios e tias ,aspirantes e pretendentes a ricos,pseudo-inteléctuais que muito rápidamente denunciam o seu lado javardo.Em tempos devido á minha antiga actividade profissional viajava com alguma frequência e as coisas são mesmo assim como dizes.
Fica bem
Joy
Dear Joy,
Essa tua descrição dos pseudo-pseudo tios está pura e simplesmente digna de registo!
Thanks Carol,
But you see, beauty is only in the eyes of the beholder!
Eu fiz-me patriota à conta da Mãe! Sou-o, mas critico Portugal por um sem número de coisas precisamente por gostar do país e me doer a alma com o pensamento triste do que somos e do que poderíamos ser.
Pois eu já corri Seca e Meca e trocava Portugal por muito poucos sítios (talvez só 3 lhe façam concorrência). Como tu, gosto de viver aqui, malgré...
Adoro ser portugues,
Bom fim de semana com saudações amigas
Dear CValente,
Me too;)
Olá...
Estou contigo nessa ambival~encia portuguesista.
Umas vezes sinto-me envergonhado de ser português devido às atitudes dos meus patrícios e outras vezes sinto uma enorme honra e dignidade de o ser...
Assim, por enquanto fico-me na última eheh ;)
Bjs
Miss, is that you? God damn it, you are just like Porto wine! :)
Dear Nuno,
Benvindo ao clube dos ambivalentes;)
Quinn,
Are u calling me an oldie?!
Quint, tu adoras viajar? Para ti uma ida ao Algarve fica-te tão fora de mão como ir a Marte e um jantar na Bairrada tem que ser combinado com dois meses de antecedência...
António, não tenhas dúvidas que adoro viajar. Especialmente se for no meu ritmo e nos meus tempos.
E agora, homem de Cristo, diz-me lá tu, que raio haveria eu de ir fazer ao Algarve?
E lá quanto à história da Bairrada, a seu tempo, a seu tempo!
-Blondie, Allgarve is part of the great West Coast!
Ó António e Quinn,
Não seja por isso, eu sou uma pessoa polivalente e até consigo encontrar buraquinhos na agenda dos outros. Vejam lá se não querem que seja eu a marcar! Ora m'esta!
Gosh, António de Almeida, thanks! Now I get it;)
They are all weird except us...
Lol (a sarcastic one;)
Just a thought.
Portuguese Jedi
Dear Jedi,
Guess that's the perspective Alice found when she crossed through the looking-glass! Good point if you think of it;)
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