Acho que na vida o inesperado guarda-nos as melhores e mais transcendentes surpresas. Eu pensava que só ia ao cinema, mas depois..., depois veio o inesperado e quando dou por mim estou à porta do Museu do Fado aguardando que me venham buscar e sem saber bem o que me espera no resto do serão. Acho que me esperava o sublime da descoberta, mas isso eu só soube mais tarde.
A primeira vez que fui a uma casa de fados foi por obrigação com um grupo de alemães amigos do Pai. Uma estucha! Só canções tristes, mulheres trigueiras de olhos negros, desenganos. O fado inexorável que acorrenta o espírito português. Detestei. Os amigos do Pai acharam exótico. Pensei que nunca iria repetir a experiência. Até este Sábado e ao inesperado de convites à última da hora que, por delicadeza e porque toda a gente é simpática com quem se divorcia, não se negam. Juntei-me ao grupo de estranhos, todos apreciadores de fado, uns guitarristas, outros fadistas, um deles compositor que também toca guitarra para uma destas novas fadistas da nossa praça que leva o fado aquém e além-mar. Ainda lhe disse que gosto de Carlos do Carmo, com aquela voz culta e civilizada de lisboeta polido pela luz e pelo Tejo, e de Camané que só descobri porque cantou com os Humanos. Respondeu-me que eu gosto de fado fácil! Enfim, nada que os meus instintos pop não esperassem. Pedi, então, fado difícil.
Perdi-me no meio da música. Ouvi sem os meus preconceitos e dei por mim num mundo paralelo no Mondego, nas planícies andaluzes, ali naquelas ruas estreitas à sombra do Castelo e vi a lua reflectida no Tejo. Impossível não gostar.
Perguntei-lhe onde tinha estudado música. Não estudou, não sabe ler uma pauta. Perplexidade seria um eufemismo para descrever o que senti! Eu estudei música seis penosos anos e só tiro dois ou três acordes da minha viola (e sem dedilhar). Aliás, ninguém ali naquela sala estudou música. Todos aprenderam aprendendo, tocando uns com os outros. E que sons que tiram daquelas violas e daquelas guitarras! Aliás, quando experimentei tocar naquela guitarra que já viu os palcos deste mundo e do outro, saíram-me sons que jamais pensei fazer sair de uma guitarra. Da minha viola sai barulho, daquela sai música. Achei o fado uma coisa mágica. Guitarras que tocam a melancolia, gente que as toca de cor e sem partituras.
No fim, pedi que me cantassem o "Barco Negro", que fiquei a saber era uma canção de sanzala, proibida no Estado Novo, porque pai João apanhava com a chibata enquanto a mãe preta embalava o filho do senhor na casa grande. Cantaram-me a versão do David Mourão-Ferreira imortalizada pela Amália.
Perdi-me, mais uma vez, e desta entre lágrimas saídas não sei de onde e arrepios na espinha... Acho que isto é que deve ser a Saudade...
21 de dezembro de 2008
Do Enlevo e da Saudade
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20 comentários:
Tocaste-lhe a alma... agora já és portuguesa. O que de sublime sentiste foi este teu baptismo no que de mais profundo e enigmático tem a alma lusa: essa forma única de ser saudade.
Um excelente texto! Faz-te bem esta nova caminhada de aprendizagens! E nós saímos largamente beneficiados...
Quando emocionalmente andamos quebradiços, toda a verdade sublime se interpenetra nos nossos nervos fazendo-nos sentir qualquer coisa com o quádruplo da intensidade.
O pai da Lígia era um mestre na direcção coral de todo o Schumann, Mozart, Beethoven, Monteverdi e quejandos, homem que amei como a um pai até à hora da sua morte que amparei com este coração que a terra não poderá comer. Dirigiu coros ao longo de mais de trinta anos, era um artista e tinha uma máxima aprendida dos exemplos de esses compositores e artistas que venerava, máxima que vi ser também a minha: sofre e a obra de génio acontecer-te-á. O sofrimento na vida é fecundidade pura para quem tem alma e sensibilidade de artista.
A vida trouxe-lhe muitos e variados sofrimentos e o sublime efectivamente nascia das suas mãos. Perdeu pai, mãe e irmã num ápice e muito cedo, ainda pré-adolescente. Suicidou-se lentamente com um álcool obsessivo. Sofria e criava.
Conhecendo-o desde sempre as nossas vidas intersectaram-se tinha eu trinta e um e ele 62. Morrer ele desencadeou um turbilhão de asperezas e misérias às mãos sádicas da sua filha e esposa. Bem que ele, no hospital, me dizia muitas vezes com aquele humor fino dele, enquanto lhe massajava e hidratava as pernas: «Vê lá, não deixes que te voltem a crucificar!»
Pouco faltou em sentido literal! Em sentido social, profissional, moral, anímico, graças à filha dele, estou morto e enterrado. Só me falta ressuscitar. Se sofro, e é verdade, faço disso uma mola para a criatividade poética que me habite.
A Saudade é isso, claro. Um dia a blonde iria chegar ao lugar onde se deve chegar quando se tem o coração aberto à vida...
Começo por notar o diletante distinguir entre fado fácil e fado difícil sem que lhe alcance verdadeiramente o real sentido, mas isso são coisas que normalmente estão reservadas aos que têm um único critério e que é o seu!
Recordo-me que, em petiz, levava injecções de fado por mor dos amores musicais de meu pai que, persiste ainda, em não se abalançar a muito mais que não seja fado.
Entre os trinados e as guitarradas de um João Ferreira Rosa (do qual recordo com particular agrado "O Embuçado", mas isso, lá está, deve ser a minha costela do fácil), Maria Teresa de Noronha, Fernando Farinha ... fiz depois uma enorme pausa dedicando agora, de forma esparsa, atenção ao Camané e ao Alfredo Marceneiro que com aquela voz rouca nos leva quase a qualquer lado ...
Implume,
Confesso que me deixaste KO. Emudeço e não sei como te responder. Nem se é suposto agradecer-te as palavras, mas cá vai: obrigada!
Josh,
Não sei se ando emocionalmente quebradiça. Acho que não. Tenho é a certeza de que há coisas novas out there for me! Fado já vi que é uma delas.
PRD,
... aberto à vida, aberto às saudades, aberto à Saudade...
Carol,
You take it easy girl:) Isto tem sido muito progresso em pouco tempo, tu vai com calma comigo:)
Quinn,
Bolas man, eu a entrar num universo todo novo e tu já aí vens do cimo da tua autoridade musical!!!! Olha, manda-me mas é exemplos desse tal fado difícil de que falas e logo voltamos à carga:)
Mais uma para o meu clube. Sê bem-vinda.
No dia 12 estive no Campo Pequeno, completamente esgotado, a assistir a um espectáculo de homenagem à memória de Amália a quando do seu inolvidável espectáculo no Olympia.
Fabuloso!
-Comecei por não gostar de fado, o que durou toda a minha adolescência, até que comecei a jantar no "sr. vinho" e mais tarde no "Luso" ou no "D.Rodrigo". Claro está que gosto de fado, Amália que descobri no início da década de 90 foi a melhor voz que ouvi, "Barco Negro" ou "povo que lavas no rio" são sublimes.
Blonde may love,
O fado é mesmo assim, primeiro estranha-se depois faz click e entranha-se...
Eu adoro fado...Eu adoro gitarra portuguesa porque é a unica que chora, o raio da guitarra chora mesmo, e se a(o) fadista for boa (bom) então aquilo vira-nos as tripas e obriga-nos a sentir mesmo aquilo que nos recusamos a sentir...
Fado facil, fado dificil, mmmm. Sim existe...
beijos
Boas Festas e Bom Ano de 2009!
Bjs
a descoberta de algo diferente par a qual estava-mos condicionados a não gostar.
Fizestes bem, ouvistes e assimilastes sem amarras e sem preconceitos, apenas a musica pela musica, a letra pela letra.
Quase como uma lição para encarar a vida, tudo deve ser visto e ouvido sem pré-condições.
Peter,
Olha, e não é que estou a gostar do clube? Ao menos não me dá as dores de cabeça do meu pobre e miserável Benfica:)
António,
Pois o meu não gostar de fado durou um pouquito mais;) E sim, também gosto do "Povo que Lavas no Rio", mas confesso que pouco ou nada mais conheço da Amália. Sem dúvida que as minhas "New Year resolutions" (não sei a tradução) passam por comprar uns cds de Amália e Carlos Paredes.
Jo darling,
Neste caso quem chorou feita Madalena parva foi aqui moi même;) E sim, adorei fado e quero voltar a uma casa de fados em breve. Foi muuuuuito bom e instrutivo!
Nuno,
Agradeço e retribuo os votos de Boas Festas. Obrigada, igualmente.
Carol,
És um amor! Lá vens tu em meu auxílio!!!! Gracias guapa!
Tiago,
"Sem pré-condições", certo, mas nem sempre é assim tão linear. Os nossos pré-conceitos são sempre difíceis de vencer, não é? Desta vez deixei-os um pouco de lado, mas infelizmente nem sempre é assim.
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