Dou comigo imóvel entre a ombreira da porta da despensa. Olho fixamente para as prateleiras cheias de tudo e mais alguma coisa: uma lata de azeite de Creta, embalagens de diversas espécies de cogumelos desidratados, um pote de chutney de manga, latas de leite de côco, chás de todas as proveniências, latinhas de moluscos que comprei em Espanha, massas de todas as qualidades e feitios, um frasco de molho de soja japonês e outro indonésio, sacos de ervas para queijo feta, ervas para moussaka, condimentos para tzatziki, as caixas todas de bombons que me deram pelo Natal e que se vão estragar, frutas em calda, puré de maçã, goiabada, um cesto com nozes que já devem estar ocas, eu sei lá. Acho que herdei da Mãe a síndrome alemã do bunker. Na nossa casa em Bremen tínhamos um que estava sempre atulhado de víveres para o caso de deflagrar uma guerra e eu achava aquele espaço o máximo. Como nós, os vizinhos todos. Lembro-me que um dia eu tinha uma bola encarnada com estrelas amarelas que me fugiu para o bunker da casa ao lado e eu tive vergonha de lá ir pedi-la. Se calhar ainda lá está perdida entre latas de Sauerkraut e Bockwurst à espera da guerra. E também me lembro de um dia a Mãe andar à vassourada a uma aranha preta, peluda e enorme que entrou sem convite no tal do bunker. Foi uma luta digna de se ver, mas a Mãe, linda com o seu cabelo louro impecavelmente apanhado e um mini aventalinho às flores encarnadinhas e umas socas com sola de madeira, venceu. Fiquei muito orgulhosa.
E agora aqui estou eu frente à despensa, olhando estupidamente para as prateleiras e a pensar que, se calhar, era boa ideia fazer qualquer coisa para jantar. Mas o quê? Não me apetece cozinhar. Por mim, comia uma rodela do ananás que sei está no frigorífico e despachava o assunto. Que tal uma pasta? Não, não me apetece ir fazer molho de tomate. E um risotto? Não, que deito sempre água a mais. Salada? Hoje não. Hmm... inventar uma coisa qualquer? Também não, passei um dia estúpido entre exames para corrigir, mails de Chicago, uma proof reading que já me farta o neurónio e a empregada esteve cá o dia todo. Não estou com pachorra para invenções. Estou tão apática que nem fui ao ginásio e este tempo húmido e frio já enjoa.
Oiço na televisão da cozinha o genérico do telejornal. Há que tempos não estou em casa a esta hora. Há que séculos não faço jantar. E eu ali em frente às prateleiras da despensa sem uma ideia, sem um apetite mais especial que me dê uma luz para o jantar. Sei que tenho ovos no frigorífico, mas devem estar estragados e depois o que é que se faz com ovos? O congelador também está cheio, mas já não me lembro de quê. De certeza que de peixe em todas as espécies e não me apetece grelhados. Penso numa salada de frutas. Afinal tenho a fruteira cheia. Mas só o trabalho de ir preparar os frutos e depois pensar no que vai sobrar, oxidar e acabar no lixo demove-me da ideia.
Arrasto-me para a cozinha. Ainda peguei num pacote de noodles chinesas mas o prazo expirara em Outubro. Na televisão a notícia de alguém que se matou e matou mais alguém lá para os lados do Portugal profundo e ostracizado. Não ligo, não me interessa. Decidi que vou fazer Abendbrot, que é tudo e nada, que não é uma receita, é só jantar em alemão. E na Alemanha o jantar é mesmo isso: Abend e Brot, o pão que se come ao serão.
No centro de um prato disponho umas rodelas de tomate e um punhado de salada de pacote. À volta umas amostras de queijo, uma fatia de presunto, que muito me admira ter em casa, e um pouquinho de um paté com frutos secos. Tosto pão. Faço um chá. Já está o dilema resolvido. Parece que os juros se vão manter nos 2%. Também não me interessa. Ainda me estou a lembrar da Mãe às voltas com a super-aranha. Acho que vou cedo para a cama. Talvez comece um livro novo...
13 comentários:
Olha lá uma coisinha...isso é jantar??? Isto é portugal Blonde , há que enfardar á portuguesa ;D
Jokas :)
A tua despensa é como a minha biblioteca, uma colecção de produtos de excelente qualidade, alguns exóticos, outros que me fazem recordar o momneto em que os comprei e depois... nunca os chego a cozinhar!
reconheço o dilema, que resolvo geralmente com uma tigela de kellogs k frutos vermelhos e leite meio gordo da vigor.
Blonde
Parece que te estou a ver na despensa com olhar meio lá meio não a olhar para o que lá tem.
A sensação de ter algumas coisas que passaram do prazo no frigorífico ou na despensa também me é familiar...
Olha que o Special K com leitinho é uma excelente opção. Ou a sopa de miso que descrevi há um tempo (ou instantânea, de pacote). Ou então só fruta, como eu gosto.
Que bem que tu escreves, bolas...
Essa da despensa ser um "bunker" está bem apanhada, mas, lá está, a mania das grandezas adivinha-se no raio da mesma ... meio mundo ali encafuado significa que só a despensa deve ser coisa para ocupar o espaço dum T1 nesse tal de Portugal profundo onde um tal de Quintino matou um, despachou não sei quantos para o hospital e se matou!
É, os Quintinos são assim! :)
E se a Batalha é Portugal profundo, então estamos conversados ó minha "bimba" universalista!
Quanto ao resto, ficas a saber que a mim para uma chávena de chã ainda me apanhas, agora lá para o resto ... desidratados, embalados, liofilizados, avitaminados, desproeteínados ... apre ... isso não é comida de gente, raio. E eu nem sou bom garfo na acepção portuguesa da palavra que é o mesmo que enfarta burros!
Quanto ao resto, realmente a moça escreve bem. dEMAIS, até.
Dante,
Enfardar à noite?! Tu queres ver-me morta, é? Olha-m'este, hein?
Implume,
Pois... também não viste tu a minha biblioteca... :)
Alexandre e Aboborinha,
Kellog's????? Leite?????? Helloooo, eu não como dessas coisas! Vocês sabem que isso são só hidratos de carbono processados sem o mínimo valor nutricional? E sabem que eu não bebo leite há uma série de anos porque não vem daí vantagem ao organismo?
PRD,
E tu, não?
Quinn,
Homem, e eu lá prestei atenção onde é que o teu homónimo se matou e o diabo? Um T1 também não te estiques, um T1 é a cozinha MAIS a despensa:)
P.S. - Faltou esclarecer que também tenho um bunker aqui na casa de Portugal, mas acho que só lá moram aranhas mesmo!:)
Aconteceu-me exactamente o mesmo, cheguei a casa, não me apeteceu fazer jantar, comi apenas umas entradas, e fui brincar com o Blip e twittar um pouco. Demorei até à meia-noite...
António,
Join the club!!!!! Só que de blips não sei nada; twitter não me seduz e à meia-noite já estava na cama:)
Com tantos aspectos que o teu texto sugere, ao lê-lo fixei-me no Abendbrot. Lembrei-me dos meus Abendbrot sozinha, tal como o que acabaste por fazer e nos descreves. Há quanto tempo eu não me lembrava desses tempos por lá!
:)))
Ó mulher, mas que raio andas tu a comprar para a tua despensa? Não seria melhor deixares-te de chinesisses e comeres uma comidinha bem portuguesa?
E lá estás tu outra vez no Abendbrot (que em tempos me punha a comer chocolates e a beber spetzi o resto da noite). Só cá faltam as torradinhas!!!!!!!!!!!
Lá que escreves bem não se duvida.
Fiquei foi com vontade de provar esse pão com todos ;)
beijos
Para quê jantar? Todo aquele aparato de cozinhar, pôr a mesa, lavar a loiça. Já me deixei disso. Um copo de leite e uma torrada e pronto.
Como me deito farde, por vezes ainda como uma maçã.
Troquei o PC pelos livros e tem valido a pena.
Bom Domingo.
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