5 de agosto de 2010

Cadáveres


"Cadáveres" pode não ser a melhor palavra a usar por quem está de férias em dias de sol, descanso e paz mas faz-me todo o sentido. Este ano nas arrumações de Verão decidi fazer o que não tive coragem o ano passado por esta altura quando peguei em mim e revirei os meus escritórios aqui de casa de alto a baixo. Deitei fora papéis e papelada, entulhos mortos e coisas esquecidas, dei livros e desfiz-me de tralhas, contudo não toquei nos esqueletos que me povoavam os armários. Deixei-os sossegados com medo de os acordar. Eu estava tão bem que não os queria confrontar. Ainda não estava preparada, acho. Ignorei-os de propósito, fechei os olhos ainda que eles me assombrassem e eu soubesse que fugia deles e me enganava.
Passou um ano. E para deixar coisas novas entrar na minha vida tive de abrir as portas aos esqueletos e ver-lhes as caveiras medonhas olhos nos olhos. Estão ali, naquela foto. Lembranças duras de épocas duras: versões e revisões do meu doutoramento e o bouquet do meu casamento imperfeito. Deitei-os fora. Estiveram dois dias ali no chão contorcendo-se em agonia a olhar para mim até que eu me desse o impulso brusco de lhes pegar de rajada e, sem mais pensamentos, despejá-los para fora da minha vida.
Olho para a foto e vejo dois cadáveres: ressequidos e descolorados pelo tempo. O meu bouquet de noiva que fui parece-me, à luz destes meus dias e de quem sou agora, um ramo de flores mortas que enterraram um defunto e ficaram esquecidas no cemitério depois do funeral. O meu ramo de noiva enterrou-me na vida sem vida que foi o meu não-casamento. Mas enterrou-me também na mulher que já não sou. "Descansa em paz", poderia escrever em epitáfio de mim e acho que era disso que eu tinha medo o ano passado: enterrar-me definitivamente, deixar para trás o Eu que fui. Não quero aquele Eu definhante num não-casamento e asfixiado por toneladas de papéis escritos que me saíam linha a linha das entranhas. Só que mesmo o Eu que nos dói é Eu e libertarmo-nos dele custa-nos no pedaço que temos de arrancar.
Sei que, apesar de os esqueletos já não habitarem nesta casa, farão sempre parte de mim, porque sem eles eu não teria chegado aqui e, de certa forma, acabaram por ser degraus que me impulsionaram na Vida. A partir de agora, porém, estarei liberta da sua fisicalidade, estão remetidos a um lugar longínquo em mim e, com sorte e querer, pouco ou nada me lembrarei deles.
Ao passado, o passado.
RIP

6 comentários:

Cristina Torrão disse...

Fez muito bem, dou-lhe os parabéns pela sua coragem! Sim, os esqueletos sempre farão parte da sua vida, mas o mais importante é que deixaram de ser bichos-papões. Estão enfim no local onde pertencem!

antonio ganhão disse...

Excelente texto. Aos poucos solta-se essa raiva repleta de ironia de quem já consegue um certo distanciamento. Os cadáveres enterram-se, quanto aos esqueletos... bem, sempre fica algum pendurado. Bjnhos

Eu Mesma! disse...

Os esqueletos fazem sempre parte da vida mas... nao podem nem devem ser mais importantes que os vivos...

imagem novamente fantastica :)

Dias as Cores disse...

Até que enfim!!!!!!!!!!!Só estava a poluir!!!!!!

Ältere Leute disse...

Kopf hoch! Herz, Fenster und Türen offen ! Auf die reine Luft ! Weg mit dem unerwünschten Unangenehmen !

Pedro disse...

há cadáveres mortos
e cadáveres vivos
e vivos cadáveres
como cadáveres mortos

que mortos cadáveres
desfizeste esqueletos
que também há mortos
em esqueletos vivos

não ligues
sou eu a precisar de férias