Este é o meu campo num dia de cinza e neblina nos montes. Está calmo... agora.
De manhã vi que o solo do relvado não absorvia mais água. Uma noite de chuva incessante e o jardim parecia uma pateira onde um melro procurava abrigo por baixo dos ramos da giesta que a Mãe plantou há muitos, muitos anos.
Não dou por isso. Um acaso apenas. Um ir à janela e ver rios de lama ocre que passam velozes pelo que era o jardim. Rios de lama fina que circundam a casa, uma ilha seca num mar de vagas que espumam castanhas. Assim, de súbito e manso de fúria. Assusto-me. Presumo que um dos rios tenha galgado a margem. Quando dou por mim de galochas e impermeável amarelo, há gente na rua. Gente que se deu conta. Gente que vai ver o que se passa. Gente que vai acudir a quem deve precisar. Imagino gente desprotegida. Imagino casas com água. Imagino o que fosse se fosse comigo. Estou na rua. Sim um dos rios saltou a margem e espraia-se à vontade. E na minha casa há um jardim submerso. Um Spotty doido de curiosidade e eu incrédula na pequenez face aos elementos e na sorte de ter uma casa destas.
Telefono histérica ao Pai:
- Nem adivinha, Pai. Houve agorinha uma cheia! Uma cheia, Pai!, daquelas com barria e água a sério. E há bombeiros! Ó Pai, uma cheia!
Devo parecer a bimba que sou. Uma Zsa Zsa Gabor em Green Acres e penso, como sempre penso, que as clivagens desta sociedade, que nos acompanham desde que a sociedade é a sociedade, me permitem ser a Zsa Zsa Gabor: a loura que vai almoçar tranquilamente e que depois pode ir passear o Spotty num campo sereno que já escondeu a ira que nos arremessou à calada enquanto outros deitam contas à vida submergida por entre água de barria ocre.
Pode ter vendavais e água brava. Dá-me um trabalho danado que eu não teria se morasse na cidade. Oiço os trovões no ressoar de paredes de ecos e o vento que silva contra as persianas ou que se abafa roufenho na chaminé da lareira. Mas é o meu pedaço de mundo. Andei afastada muito tempo. Os estudos, as viagens, a profissão, o passado nascido noutro país, a Mãe que aqui morreu e a sepultura do meu não-casamento. Tudo isso me afastou. Tudo isso me fechou gavetas no coração e na mente. Não condizo com o espaço. Sou sempre a Zsa Zsa Gabor e não consigo ser outra coisa que não a Zsa Zsa Gabor. Sei que seria feliz noutro local qualquer mas aqui: aqui estão as minhas umbilicalidades viscerais e isso não se explica, sente-se, como eu senti hoje num dia de cheia que, sem me tocar, me tocou no mais irracional que tenho: home...
9 comentários:
Blonde, gostei muito deste teu texto sobre a tua home que é e será sempre, onde nos sentirmos felizes...
isso por aí está "preto"
Tem cuidado com o Spotty ou ainda é levado pelas águas e tens de dar uma de bombeira para o resgatar!
Ainda bem que não foste atingida, o tempo parece estar a melhorar...
Ola Blonde,
se viesses para a margem sul estarias melhor, isso para o Oeste é mais agreste.
Beijos gostei do Blogue.
Com, ou sem cheias, é importante passear com o Spotty. E descobrir, com ele, o prazer desses passeios. Deixe-se contagiar pela curiosidade e pela alegria dele :)
Já aqui o disse: existe esperança para esta Blonde. Eu confio em ti.
E hoje, e acho que sempre, continuaremos a ser dos privilegiados : as nossas cheias serão sempre menores...
Hum ... Zsa Zsa Gabor?
Why not Elizabeth Taylor?
By the way ... latifundiária! :)
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