Nunca um livro me foi tão demorado de ler. Anos. Ficava mudo em cima da mesinha-de-cabeceira ou do banco corrido aos pés da cama. Pensei trasladá-lo várias vezes para a biblioteca mas achava sempre que se o fizésse antes de o acabar de ler o mataria. Por conseguinte, foi ficando anos e anos no quarto. A decoração mudava e ele ficava. Os móveis mudavam de sítio e ele ficava. Os homens na minha cama mudavam mas ele ficava. E ficava sempre. Achava-o insípido e parado face a um filme que eu via e revia, vejo e revisito vezes sem conta. Faltava um link qualquer, algo que me motivasse a leitura. Voltei a pegar nele e a forçar-me a ler as infinitas descrições dos pormenores comezinhos da vida numa quinta africana. Na decisão, comecei a ler ouvindo as palavras a que os olhos davam forma na voz da Meryl Streep e do sotaque arrastado por uma vida que acabou lá longe, num passado que se abre cheio de imagens perdidas. E li com a banda sonora do John Barry a emprestar a amplitude do espaço nostálgico da mente e da savana.
Porém, àparte os artifícios que impeliam a leitura, li porque me revi na solidão da Karen Blixen, nas responsabilidades enormes que ela tomava nos ombros e no que ela precisava das palavras escritas. Se fosse hoje, talvez ela tivesse um blog e se sentasse, acompanhada por grandes chávenas de café amargo, na biblioteca silenciosa, por entre livros e fotos emolduradas de passados, a escrever as tais coisas comezinhas do dia-a-dia na Casa rodeada de relva e pássaros, na Casa que lhe dava um trabalho imenso a manter, e a escrever os percalços das colheitas sempre más e dos Kikuyus que habitavam na fazenda. Deixei de ler a tentar encontrar o filme. E, finalmente, encontrei a fazenda em África e a mulher solitária e observadora que lá vivia. A mulher que escrevia sobre grandes tudos e pequenos nadas, que conferia um carácter quase palpável à fazenda viva e sarcástica que ela amava mas que a perseguia e que, apesar da escrita toda que lhe brotava em necessidade, resguardava com inexcedível elegância a intimidade dos seus relacionamentos tão explorados no filme.
Levei anos a ler e ainda bem porque só agora eu conseguiria ler como quem lê...
6 comentários:
Mas não faça comparações tristes. V. não é nada disso.
Às vezes, é preciso encontrar o momento próprio para ver um certo filme, para ler um livro...
Bonito texto :)
Nunca tinha pensado nisso, mas existe muito de Karen Blixen em ti, e o teu blog é o teu Out of Lisbon, também no campo encontraste o teu refúgio, com os teus pássaros, árvores e kikuyus que insistem em tomar conta de ti e de te encher de oferendas...
Quando te descolas de ti própria produzes sempre uns textos muito bons, intensos e estranhamente intimistas...
Geralmente o que me acontece é que os livros superam sempre os filmes.Normalmente, depois de ler já não gosto de ver o filme. Neste caso, não li o livro, vi só o filme que também, confesso não me encheu as medidas
Como vi o filme, já não consegui ler o livro.
Um dia também conseguirei ler a Divina Comédia... não sei é quando...
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