Não sei como te escrever. Sei que quero escrever de ti. Não estou em choque. Não estou a reagir na incredulidade, na surpresa violenta com que reagi quando soube da Cristina. A F. saiu daqui agora e tu calhaste em conversa. Ela não te sabia um capítulo na minha vida. Engraçado como ela poderia ter saído hoje daqui, de uma das nossas conversas, sem que eu soubesse de ti. Eu ignoraria. E na noite de Consoada iria, como nestes anos todos, lembrar-me: "O Nuno faz anos hoje." Um pensamento que duraria os segundos de se semi-materializar na minha mente mas estarias lá nesses segundos. Não sei, portanto, como estou a reagir. Se for para a cama levo-te no pensamento e não será só por uns segundos. Lembrar-me-ei de tudo, das canções que compunhas e tocavas à viola, da tua voz, de tantas coisas.
Eu augurava-te um futuro escrito a maiúsculas. Admirava a tua inteligência e a capacidade de articulares conversas. Acho que me ficaste como marca em muitos dos homens de que gostei a seguir a ti: olhos de céu a espreitarem nos óculos e o cabelo louro dourado, quente, amistoso, diferente do meu mais agreste. Talvez inconscientemente eu tenha estabelecido em ti um paradigma ou talvez, aqui neste Meridião, me lembrasses os homens do meu Norte original. Não sei. Sei que gostei de ti e que me fui lembrando de ti à medida que a minha vida se separou de ti.
Não te reconheci na última vez que nos vimos. Estranhos. Vidas muito distantes. Universos de galáxias diferentes. Acho que me desapontaste mas é terrível de mim, depois de eu saber disto, dizer uma coisa destas. Não vi o teu futuro escrito a maiúsculas e o meu estava ali, em negrito e sublinhado. Apareceste-me escrito normal. Foi isso que me desapontou. Que terrível de mim ter pensado isso. Que terrível hoje.
Sim, tudo nisso foi, afinal maiúsculo. A tua inteligência rumo à libertação última, final, amordaça o meu desapontamento. Foste determinado, louvo-te isso. Calo a vontade de te recriminar. Inibo-me de te julgar. Imagino a cena. A premeditação meticulosa. O jogo do teu cérebro superior a ser usado no plano perfeito, com calma. Não consigo imaginar mais. Páro. Porque se imagino mais acho que vou perder a consciência ou vou desabar.
Sinto o coração a querer bater, naqueles batimentos arrítmicos, sabes? Mas estou a fazer um esforço estóico para não o deixar descontrolar-se. É medo. É medo de aceitar. É medo de saber que sim, que é real. É medo de desatar a chorar. É medo de começar a visualizar. É medo de te perguntar porquê e começar a comparar-me contigo e que eu estou aqui. E eu não posso fazer isso. Eu não te posso dizer:
- Olha para mim. Pensas que tem sido fácil? Pensas que alguma vez foi fácil? Pensas que não pensei nisso? Pensas o quê? Que enfrentamos a Morte e a perda sem que isso nos faça passar o inferno? Pensas que é fácil aguentar um casamento duro e sair dele sem que te deixem sair? Pensas que isto não é uma luta constante? Pensas que é fácil acordar todos os dias com o passado a olhar-te quando te levantas da cama?
Pronto, conseguiste! Ei-las que chegam! E eu não te posso perguntar nada. Não me posso usar como comparação contigo. Nem seria justo.
Vou ter saudades de te saber neste mundo. Não gostaria que um capítulo bom desse passado que acorda comigo fosse tão derradeiro e tão permanentemente fechado.
Vieram enterrar-te aqui. Estavas tão longe e agora estás tão ironicamente perto. Vou passar por ti todos os dias. Todos os dias. A começar daqui a bocado quando amanhecer e eu passar no mundo dos vivos à tua porta.
Ó meu Deus, que esta hora me passe depressa. Ó meu Deus, eu estava a protelar. Ó meu Deus, que o meu choro se cale. Ó meu Deus...
6 comentários:
Leitura de silêncios.
Só um abraço, e um preito a alguém que, diga-se o que se disser, teve coragem!
"medo de desatar a chorar"?
Chore, Blondinha, chore, deite tudo cá para fora! Raus damit!
Sei a sensação. Sei o medo da comparação. Mas eu também cá fiquei, e sinto-me viva. É sempre dramático, não há respostas, não há a quem pedi-las porque essa pessoa já não fala. Fica a dúvida se poderíamos ter evitado (no meu caso a dúvida quase não existe: não dava mesmo para evitar), fica a dor profunda da premeditação.
Já não me lembro é como ultrapassei, mas ultrapassei. E tu também vais ultrapassar. Se precisares de alguma coisa, diz, OK?
Um abraço muito apertado, Blondinha.
Um dia a dor vai passar...
um dia a mágoa vai passar... vai ficar a saudade... vai ficar o carinho e a memória....
beijos grandes
Enviar um comentário