Não me lembro de adormecer. Lembro-me do vento em silvos. O vento solto e forte de campo descoberto e amplo. Lembro-me de pôr o despertador para muito tempo antes de me ser necessário acordar. Planeei ir ter com a tua tia. Falar-lhe sem saber o quê, só à espera que o olhar dissesse que não foste em vão. Planeei ir ter contigo. Não conseguiria passar por ti no dia em que te sei aí e ignorar-te sem me deter.
O alarme toca. Esqueço-me porque tenho de acordar. Lembro-me mas a coragem quebra-se. Fico na cama a olhar a claridade coada que entra pelas persianas. Não sou capaz. Não, ainda vou a tempo, penso melhor.
Visto-me de bonita. Sempre quis que me visses bonita. Tento forçar o pequeno-almoço sabendo que a angústia sempre me levou o apetite. A angústia vence.
Saio.
Entro na loja da tua tia e, graças a Deus, é a tua prima que lá está. Como é que eu, agora que tenho um sobrinho, como tu foste da tua tia, a ia enfrentar? O que é que ela sente, ela que também te adormeceu nos braços nos intervalos da tua mãe? Que dilaceração eu não sentiria?
Não são precisas muitas palavras. Estávamos todos lá no passado. Não são precisas grandes explicações e das outras eu prescindo. Recuso-as. Peço-lhe que dê um abraço à tua tia e digo-lhe que não insisto em enviar um à tua mãe para a poupar de mais memórias. Ela diz que não, que o vai dar, que o quer dar.
Vou ter contigo.
Não sei porque te trouxeram para aqui. Foste feliz aqui? Terá sido por isso? Por aqueles Verões e férias? Pela liberdade que aqui tinhas e que talvez nunca tenhas tido onde moravas e a tenhas procurado da maneira como o fizeste? És livre aqui? Também só eu aqui permaneci quando a minha família morreu. Percebo. Aqui temos o vento. O vento que me desalinha os cabelos sedosos de limpos do meu cosmopolismo quando entro para te visitar. Demoro a encontrar-te. Uma campa fresca de lama. Flores que dizem que morreste agora e que eras querido. Vês como te sentem a falta? Ajoelho-me como se te estivesse à cabeceira.
- Foste querido e tenho pena que seja tão tarde para te dizerem isso. Espero que tenhas encontrado a libertação. Que te seja suave e pacificadora.
Falo-te. Lembro-te enquanto afago flores molhadas de chuva. Deixo-te uma rosa, encarnada, despida de ornamentos. Levanto-me e vou-me embora. Um traço magro de cor por entre mármore encardido pelos elementos. Apercebo-me que é a minha geração a que agora começa a levar com os embates que eu via a geração dos pais levar. Sou eu agora que vou contando os mortos. Já devemos ser adultos para nos confrontarmos com isto. Adultos no sentido de vividos.
Regresso à carrinha e sigo para a cidade onde vou dar amor e ver olhos que começam a ver. Estou cinzenta por dentro. Na alucinação imagino que falas comigo na coincidência de ouvir os Queen em "Too much love will kill you, just as sure as none at all". Falaste comigo? Sinto-as escorrem-me pela face. Grossas e quentes. Contornam-me o queixo e escorrem pelo pescoço. Não as aguento.
Chego a Lisboa com a cara a repuxar de lágrimas secas. Passo o resto do dia a olhar um céu estranho através de janelas de cidade. Sobre a mesinha de café, dorme numa alcofa um embrulho de gente e por detrás imagens sem som de um mundo aberrante que leio em legendas.
Babel. Não a Torre. Babel o filme das coisas ininteligíveis. Sinto-me personagem em Babel. Falo com mortos na cabeça enquanto um bebé me dorme em frente do sofá onde estaciono os pensamentos.
Reconheço-o, o luto. Não queria estar aqui, em luto. Guardo-te para sempre como N. nos meus diários, como Nuno nas minhas memórias e vou ver-te para sempre como eras: um tipo com um futuro maiúsculo pela frente e céu nos olhos.
Só hoje te consigo dizer:
Descansa em paz...
3 comentários:
Que nesta época encontres em ti um renascer de paz, amor e dias de doce embalar.
Fica proibida de pensar em privar-NOS de textos como este, o anterior e os outros, com tantos "tons" diferentes!É preciso dizer mais alguma coisa?
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