Continuo nas arrumações da biblioteca-escritório e vou-me dando conta de que ou já fui muitas pessoas, ou já vivi muito, ou, então, cheguei a um promontório qualquer donde contemplo passados. Acho esta última hipótese mais tentadora. Decidi-me a expurgar coisas como se a bagagem fosse pesada demais. Pergunto-me o com que direito ando a fazer o que faço. Com que direito atiro fora livros de cálculo e engenharia que eram do Pai e da Ciência dos anos '60? Penso, selvaticamente acho, que nunca serão precisos, que estão ultrapassados, que nunca mais foram usados, que já não dizem nada. Penso depois que sou egoísta e que estas escolhas são imanentemente egoístas. E se os meus sobrinhos um dia aprenderem Alemão ou se quiserem saber da história da Ciência e do Avô? que direito tenho de fazer estas escolhas? O que fica e o que não: pareço deus.
Noto também o meu afastamento, tão mais pronunciado do que eu julgava, da minha primeira língua e penso que estamos a morrer, nós que a falamos nesta família: a Mãe morreu, a Tante Henny morreu, a Tante Ruth vai morrer, o Pai vai morrer e, se a lei natural se preservar, eu morrerei depois deles. A minha irmã não pode dizer que fala a nossa língua; os meus sobrinhos vão falar Inglês e Português sem nenhuma ordem de prioridade. Quem vai ler os nossos livros?
Resolvi livrar-me de todos os livros em Alemão que me obrigaram a ler. O curioso é que os que me obrigaram a ler em Português ficaram. O que eu detestava as listas de livros que a Mãe fazia para me pôr a falar esta língua. A carrada de Eças que li aos nove e aos dez e o que os desprezei e, afinal, ficam todos e os alemães partem para quem os queira ou quem os ache numa pilha esquecida algures em nenhures.
É, esta coisa de a identidade se assumir numa língua tem que se lhe diga e eu, que sempre tive dificuldades identitárias, chego a esta idade, chego a estas arrumações e continuo sem me fazer sentido mais do que dar-me conta de que me vou matando o Alemão... Es ist traurig oder, vielleicht, nicht.
2 comentários:
Eu estou no percurso contrário, agarro-me a todo o Alemão que tenho a ver se não me abandona. Faz um pacote, coloca à venda e manda-me o link...dos de leitura, claro, a engenharia dos anos 60 parece-me menos interessante :)
Espero que os Lessing, os Goethe, os Schiller, os Kleist , que mais sei eu... e o "meu" Thomas Mann, não levem descaminho !
Os meus estão todos em lugar de honra, e às vezes descem da estante para rememorar. Um dia,alguém os irá desviar dali,porque ninguém na família nas minhas mais próximas gerações ( que são as que deverão decidir ) seguiu este rumo...
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