15 de abril de 2014

O hoje passado que muda tudo

Para memória futura.


Queridos Manuel e Margarida,


Quando souberem ler e souberem o que se passou hoje será futuro. Mas hoje é presente da Tia, passado de vocês. O dia de hoje foi só da Tia. Mas foi por causa de vocês, ou para vocês, que o dia de hoje sucedeu. Também foi por causa da Tia. Foi por causa de uma conversa com alguém caro à Tia. E foi por causa da Avó Vina, que é a Mãe da Tia, e da Avó Matilde e do Avô Teodoro que são avós da Tia e vossos grandes Avós. De Nós, vocês só conhecem a Tia e a vossa mãe, Mana da Tia. Contudo, a Tia espera que o Tempo deixe que nos conhecemos mutuamente melhor do que hoje, que é um tempo em que é mais a Tia que vos conhece do que vocês conhecem a Tia. Enfim, isto tudo para dizer que, a partir de hoje, haverá um dia em que vocês vão saber deste dia. E neste dia, a Tia legou-vos a sua máxima herança, a qual é: Nós.


Para memória futura (vossa), a Tia vai guardar o bilhete de comboio e vocês nem imaginam a viagem que foi. A Tia conta.


Era uma vez Nós. E Nós vimos de há muito Tempo e de um lugar que se chama nada. Por se chamar nada, e porque nenhum lugar se chama nada, alguém antes da Tia escreveu sobre esse nada e muita gente quis saber porque é que esse nada, que é tudo menos nada, se chama a não existência, esse nada do nome. A Avó Vina e a vossa grande Avó contaram muitas histórias do nada à Tia e a Tia e a vossa mãe passavam as férias infantes ali no nada, que é muito. Só que, de tantos que éramos, ficámos só a Tia e a vossa mãe. A vossa mãe fez-vos para nos continuarmos e a Tia escreveu-nos para se libertar de dores de perda e de saudades e para que vocês, que nunca passarão as férias grandes naquele nada, o possam conhecer e às suas histórias.


Vocês vão ouvir, talvez, que a Tia escreveu um realismo-mágico. Contudo, o que os outros possam chamar de mágico, para Nós, naquele nada, era apenas real. Como é. Por isso, no binómio realismo-mágico, só vos interessa, e a Nós, a parte do realismo. A Tia não sabe, ou sonha, o que se possa seguir. A Tia só sabe deste agora, mas vocês, ao lerem isto, saberão o que se passou entretanto, no futuro, que a Tia desconhece mas que vos será passado. Para já é a potencialidade e a potencialidade é fecunda e larga, cabendo lá muitas coisas: as que a Tia espera e as outras que lhe são imprevisíveis.


O dia de hoje tinha de ser como foi e a Tia pensa que cada dia que viveu permitiu a chegada até aqui, até este hoje, um hoje feito de muitos dias antes, muitas gerações e tantas que recuamos séculos até aos princípios de Nós. A Tia queria dizer muitas coisas. Porém, está tudo a quente e só quando a Tia entrou com a carrinha pelo portão adentro e se deu conta de que a viagem acabara aí, é que se apercebeu que o dia de hoje começava a ser passado e que a viagem já entretanto o era. A quente, a Tia só vos consegue escrever, ela que tanto se escreve nos seus dias. A Tia vai precisar de Tempo para se dar conta do Tempo de hoje, ou seja, a Tia vai precisar que hoje seja passado para que o possa rememorar. Hoje a Tia não consegue, e não quer, outra coisa que não seja viver este dia.


Meus queridos sobrinhos, a Tia está tão feliz por vocês irem saber de Nós...

1 comentário:

Ältere Leute disse...

Parabéns ! Pelo texto e pelo acto - "Ovo de Páscoa" recheado de Amor ! Bj.