24 de junho de 2014

Desfecho de um divórcio: Parte VII

3 de Junho de 2014:
Acordo para o dia seguinte. Sempre gostei da expressão francesa le jour d'après, transmite melhor o significado do dia posterior ao dia de um grande acontecimento. O meu jour d'après é hoje porque ontem foi o dia do grande acontecimento.
Acordo atordoada. Não estou nem feliz, nem aliviada. Contudo, não estou nem stressada, nem angustiada. Estou dormente. Lembro-me de acordar assim no dia depois de a Mãe ter morrido. Como é possível eu comparar acordar hoje com acordar para a morte da Mãe? Eu hoje acordo para a vida, naquele dia acordei para o luto e para a irremediabilidade da perda. Mais tarde, a minha irmã explicar-me-á que estou a viver um período de stress pós-traumático natural e expectável. A Ciência explica que a minha amígdala cerebral viveu quase seis anos em modo de sobrevivência, como se eu estivesse numa selva primitiva e me tivesse de defender contra predadores e, por isso, a chegada à segurança não se faz instantaneamente. O meu cérebro, que se habituou ao martírio, vai ter de se habituar à nova circunstância. A explicação faz-me sentido e acho-a surpreendente. Ao fim e ao cabo sou uma sobrevivente. Vivi em situação de guerra, psicológica é certo, mas guerra apesar de tudo e dias houve em que contemplei a morte de perto quando tudo me desabava e eu pensava que não teria forças para mais. Comparo-me a um veterano de guerra que sobreviveu. É uma pretensão arrogante comparar-me com quem sobreviveu a balas e morte iminente, mas é assim que me sinto.
Sempre pensei que no dia em que o meu divórcio tivesse um fim eu irradiaria felicidade e júbilo. Porém, seis anos e martírio longo operam em nós transformações profundas. Não tenho capacidade para exprimir felicidade. É como se estivesse seca por dentro. Como se tudo me tivesse sido sugado.
Passo o dia na faculdade a trabalhar e, de vez em quando, tenho um flash de consciência que me diz: Estás livre! Deixo o flash passar porque não o consigo sentir. Ainda não consigo sentir que estou livre. Os grilhões foram tão pesados e apertados que ainda me marcam e ainda lhes sinto o peso arrastado.
Saio da faculdade às 16.30. Tenho uma urgência enorme de ir tratar do meu Eu espiritual. Preciso começar a fechar este capítulo para poder sentir a paz e a liberdade que alcancei. Pego na carrinha e rumo a uma igreja que me foi bordão nestes seis anos e que descobri apenas porque vivi este divórcio. É uma igreja ao pé de um largo empedrado na parte velha de uma vila, hoje cidade. Fica entre dois edifícios que alojam os dois tribunais onde, durante quase seis anos, mantive uma pendência, em dois processos distintos, que me levasse ao divórcio. Tantas e tantas vezes que entrei naquela igreja depois das agruras do tribunal. Tantas vezes ali me refugiei pedindo auxílio regado a lágrimas que não tive vergonha de chorar em público. Ali eu era apenas filha de Deus. Uma filha em sofrimento pedindo perdão por ter casado. Uma filha pedindo força para suportar a cruz; pedindo luz e sentido para o que lhe estava a acontecer.
Dou conta de entrar na igreja como filha que não vem pedir. Entro nesta igreja e, pela primeira vez, apercebo-me de que venho em liberdade. Meu Deus, chego em liberdade. Desaprisiono as lágrimas que me correm grossas e quentes e não me importo que haja uma senhora ali também e que mas possa ver. Meu Deus, estou em liberdade!
Agradeço.
Olho para o Cristo a carregar a cruz. Agradeço que me tenha ajudado a carregar a minha. Estive no Gólgota durante o fim-de-semana. O calvário foram os quase seis anos de percurso martirizado. O Gólgota, o clímax de agonia do fim-de-semana. Sim, morri numa cruz de stress e ansiedade no fim-de-semana e hoje sinto que estou dorida e lassa do suplício. Sinto que me descem da cruz e descanso porque sei que unguentos vão sarar este corpo. Descanso o espírito nesse pensamento. Ainda estou ferida mas vou sarar. E agradeço ter quem me ame. Agradeço ter podido chegar aqui. Agradeço que a minha verdade tenha sido a Verdade.
E peço.
Não peço por mim. Peço pelas vítimas, pelos mártires, pelos injustiçados e pelos presos sem culpa. Peço pelas mulheres que vivem situações como a minha ou piores, porque há bem pior do que o que eu passei. Decido acender velas, eu, cuja religiosidade não é de velas. Quando as acendo não é em mim que penso. Ofereço as velas como luz para todos os mártires.
Saio da igreja em paz. Vou comprar flores porque há mais uma paragem obrigatória no meu percurso rumo à vida nova.
Páro no cemitério porque tenho de dar estas notícias à Mãe sem ser só em pensamento. Minha querida Mãe, que feliz sou que não tenhas vivido nesta Terra durante a infelicidade do meu casamento e a tragédia do meu divórcio.
Mutti, estou livre e sei que estás feliz. Adoro-te, Mãe!

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