Quando a minha Tia me abre a porta e me abraça como só ela me sabe abraçar volto atrás no tempo. Instantâneos de vida passam-me pela alma, pelos olhos e pelo coração. Que saudades tão portuguesas eu tinha da minha Tia tão alemã. Conheço-a desde sempre e ela conheceu-me primeiro do que eu me conheci. Depois da morte da Mãe, as três pessoas que restaram com conhecimento de mim mais velho do que eu foram o meu pai, a minha Tia Henny e a minha Tia Ruth. A Tante Henny morreu vai para quatro anos. Sobra-me apenas o pai em Portugal e a Tante Ruth na Alemanha. Só me restam estes dois cordões umbilicais que me ligam a um tempo anterior a mim.
Não consigo explicar o que esta Tia significa para mim. Quando a Mãe adoeceu vim à Alemanha ter com as Tias em busca de consolo e conselhos. A Tante Ruth fez Rote Grütze (uma sobremesa de frutos vermelhos e minha preferida) e acolheu-me com Sekt, o champanhe alemão. Sentou-me à mesa e brindámos à vida. Depois escreveu num papel "In zeitdichten Schotten denken" que era a máxima de vida da Tante Henny (Pensar por compartimentos). Dobrou o papelinho e colocou-o na palma da mão fechando-ma sobre ele e fazendo-me prometer que eu iria viver assim. Prometi. Vivi e vivo. Guardo o papelinho como um tesouro. O melhor conselho que alguma vez recebi.
Quando nos desabraçamos vejo que pôs a mesa. Noventa anos ainda activos. Minha querida e adorada Tia. Empatiza com o meu marido no imediato e ele com ela. Nunca aqui trouxe a minha vida anterior a este casamento. sabia que aquilo era um não-casamento e não conspurquei esta parte de mim trazendo-o cá.
Vamos ao Parque de Stieglitz, longe das multidões de turistas, e almoçamos na esplanada de um restaurante suíço de amigos da outra sobrinha da minha Tia, que é mais velha do que eu quase trinta anos e que foi criada pela minha Tia quando os pais morreram num passado que nunca conseguimos esquecer. À mesa falamos da era em que vivemos, do medo que temos do esquecimento colectivo, das ondas ameaçadoras que se levantam por todo o lado. Falamos da intolerância, da agressividade e falamos de esperança. Se tenho medo da morte física da Tante Ruth, também tenho medo da morte dela pelo que ela tem de geracional. Estamos a perder a geração com memória e vivência da Guerra. Assusta-me que o mundo se esqueça.
Falamos do passado. Falamos de viagens, das aventuras da Tia, que só e somente tem o alemão por língua, e foi ao Uganda e à Líbia sozinha e sem tradutores em épocas de guerras-frias. Amo-a. Passeamos pelas alamedas do parque de Stieglitz num dia de sol maravilhoso. Deixo-me fotografar com ela. Passeio com ela de braço dado. Esqueço-me de falar português com o meu marido e falo-lhe no alemão que se me ressuscita no contacto com a minha Tia. Ele olha-me em sorriso e percebe que a linguagem dos afectos é universal mesmo que o verbo que eu use neste dia seja o da minha primeira língua. Estou feliz de felicidade...
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