28 de março de 2018

O que me é vir a Rheydt

Já não há nada de mim em Rheydt. Memórias. O acaso do meu nascimento. Vivi aqui três meses depois de nascer, porém Rheydt nunca esteve muito longe de mim, mesmo que andássemos longe. Havia os Falls, que me tiveram nos braços antes dos meus avós portugueses e, claro, havia a minha Tante Henny, um portento de mulher que vivia a vida como se inspirasse grandes golfadas de ar de cada vez que respirava. Sempre me lembro dela bem-disposta, tinha uma voz que ecoava e se ouvia em alto. Era uma presença! Deixou o lado oriental da Alemanha aquando do fim da Guerra e da ocupação mas acho que nunca se queixou da sorte. Coleccionava patos de todas as formas e feitios e eu cheguei a contribuir com patos de louça das Caldas para a sua colecção. Não deixava que a vida a perturbasse. Morreu há quatro anos. Demente. Depois de ela morrer quis ir à Alemanha ter com a minha outra tia mas nunca consegui porque não queria enfrentar a orfandade da minha Tante Ruth, porque não queria despedidas, porque tinha medo da dor que me esperava. A Alemanha chamava-me e eu resistia.
Quando decidi que este ano é que teria de ser, confesso que vim a medo. Forcei-me em pensamentos positivos de vir mostrar a Alemanha ao meu marido. Forcei-me na alegria de serem os noventa anos da Tante Ruth. encontrei felicidade em poder ter os nossos padrinhos americanos na primeira parte da viagem. Ou seja, vi coincidências que me afastariam o receio da tristeza que eu sabia também me esperar nesta viagem.
A Tante Ruth já não mora em Rheydt. Regressou a Berlin há sete anos onde quer acabar os seus dias. Na Heimat, na pátria, como sempre ouvi dizer às minhas tias sobre o outro lado da Alemanha. Que estranho e triste que elas se referissem à sua pátria vivendo no mesmo país. Acho que nenhum português consegue compreender estes paradoxos. Os Falls há muito que morreram. Ele era veterano de guerra. Tinha uma perna prostética e vivia numa rua onde todos os homens eram mutilados de guerra. Todos. E todos casaram independentemente do grau de mutilação que trouxessem da guerra, porque, na geração das minhas tias, havia escassez de homens. As minhas tias nunca casaram. Também acho que isto é difícil de entender: um país depauperado de homens numa inteira geração.
Percorro uma rua que só me traz memórias porque já nada aqui resta fisicamente do meu passado. Tiro fotos à rua, às casas, à tabuleta e envio-as por email para a minha tia em Berlin. Penso na ironia das coisas esvaziadas. Na ironia de enviar emails à tia com quem sempre me correspondi por cartas longas de muitas páginas.
Amo a minha Tante Ruth. Tem a voz mais doce que imaginar se possa. Não tem o corpo possante que tinha a Tante Henny. Porém, a fragilidade do físico é compensada por uma alma (de) gigante. Toda a vida foi uma aventureira. Uma vez foi sózinha ao Uganda ter com um amigo. Outra vez foi para a Líbia. Nunca falou outra língua que não o seu alemão, o seu Hochdeutsch, o alemão-padrão, que eu também falo, e que não nos deixa compreender outras variedades de alemão. Foi à Turquia. Fez um cento e mais de coisas. Colecciona corujas, tal como a Tante Henny coleccionava patos.
Venho a Rheydt mas não me demoro. A alma não me mora aqui. Rheydt foi-me um acaso. Rheydt deu-me as minhas tias mas elas já cá não estão. Sinto-me tremendamente só aqui. Ainda não tinha sentido solidão nesta viagem. Como posso estar só se me acompanha o homem da minha vida, se me acompanharam os nossos padrinhos, se já estive com a Tante Ruth? Contudo, sinto aqui em Rheydt uma solidão desmesurada. A minha Mãe morreu há quase vinte anos e eu vim aqui em busca de consolo à casa das tias quando o veredicto da doença nos entrou em casa. A Tante Henny morreu. a Tante Ruth está em Berlin. Perdi Rheydt e é essa solidão que sinto, a solidão da perda. Fecho o coração e digo a mim mesma que não mais aqui regressarei. O luto de que eu tinha receio de vir encontrar, faço-o aqui. Acho que Rheydt me morreu...

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