Aqui num lago em que há duas ilhas separadas por água e por género não deixa de ser curioso verificar o apartamento que culturalmente opõe feminino a masculino. Aqui, a ilha dos homens, Herrenchiemsee, conota-se com a pujança do poder e do domínio, o palácio megalómano de um rei excêntrico que viveu para impressionar. Do outro lado, a ilha das mulheres, Fraueninsel, uma ilha mais pequena, o próprio tamanho a evidenciar, metaforicamente, a pequenez devotada às mulheres. Fraueninsel é conhecida pelo seu mosteiro de freiras beneditinas, daí a ilha ser das mulheres. Respira-se paz e simplicidade, tão ao contrário da ilha vizinha.
Hoje estranho a enchente turística que se apropria da ilha. Há vinte e tal anos, quando aqui estive pela primeira vez, o dia estava acinzentado, muito diferente do dia resplandecente de azul que está enquanto vou calcorreando os poucos hectares desta ilha, e, tenho na memória, que não havia quase ninguém. Pude, à vontade, ver o que me apeteceu e tomar tempo para observar. Hoje vejo apenas. As hordas tiram-me o gosto e a vontade da observação. Decido mentalmente dar a volta à ilha no entrementes que dura a chegada do barco que nos traz e a partida do próximo que nos levará de regresso. Há, no entanto, algo que me é imprescindível. Procuro-O.
Nesse dia, há mais de duas décadas, fui detida por Ele. Acho que talvez tenha sido uma experiência mística por eu estar fragilizada com a notícia que a minha Mãe teria de caminhar um calvário e nós com ela. Sei que, nas minhas deambulações pela ilha a ver o mosteiro, me deparei com aquela estátua, um crucifixo em escala humana e real que me chamou e me fez voltar para trás ao Seu encontro. Obedeci ao chamamento e ali estava Ele, tão verídico, tão homem como nós. Lembro-me de pensar que Aquele poderia muito bem ser o Cristo real.
Talvez que, dado o pardacento do dia, a cor da pele lhe estava macilenta, acinzentada. Esvaído. Parecia ter morrido em paz e nessa paz estar vivo. Nada de semelhante aos crucificados horripilantes do Catolicismo meridional. Aquele era sereno. Fiquei ali a contemplá-Lo e a pedir-Lhe pela minha Mãe e por nós. Ainda não sabia, naquela altura, que o calvário nos ia durar seis anos e acabar num Gólgota sem ressurreições. Procuro-O neste dia cheio de gente e é tudo o que quero e tenho para fazer ali na ilha. Encontro-O.
Está, como me recordo, num canto semi-escondido, um pátio interior pouco percorrido pelas hordas visitadoras. Aproximo-me em busca da aura magnética que me cativou há tantos anos. Não a encontro. Não sei se é porque vivo na felicidade que não tinha há vinte anos, se é pelo sol alegre do dia, se é porque o meu marido está aqui ao meu lado e eu não estou na solidão que se presta à contemplação. Sei que este Cristo não me convoca como naquele outro dia. É como se tivesse cumprido a Sua missão e Se tenha recolhido ou, então, é porque Se dessacralizou no meio desta violação por gente e mais gente e já não esteja para Se dar ao trabalho porque nós deixámos de Lhe ligar. Vejo-O. Acho que Lhe falo o "obrigada" que Lhe devo e vou-me embora ligeiramente esquisita por não ter encontrado o que julgava vir encontrar. Circundo o resto da ilha em direcção ao cais e, mais do que olhar para o mosteiro alvo que tanto fascínio sobre mim exerceu no passado, viro os olhos para o azul do lago e para o horizonte de céu. O dia está lindo e é a memória do dia que vou levar daqui hoje.
Quando regressar a casa vou procurar a foto do Cristo de há vinte anos e compará-la com esta que agora levo. encontro-a na caixa das recordações passadas. Lá está Ele naquele dia cinzento e húmido. apaixonei-me por Ele mal o vi e agora, nesta comparação, percebo o que é o passado e o presente, como a vida muda, como mudam os estados de espírito, as paixões e as percepções. Louvado Sejas por me trazeres ao Aqui em que habito, por me ajudares a entender as mudanças e já não me agastar tanto com elas. Amén!
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