31 de janeiro de 2017

Dia 11: Depois do aviso... Horseshoe Bend

A meio do percurso e já quando o sol me violenta de todas as maneiras que me grelham a pele, vislumbro uma fenda colossal na paisagem. A esta distância parece uma cratera e nada mais. Olhá-la não me faz lembrar o imaginário que trago e que sei que ali se esconde. E se não for como eu imagino? E se não for a imagem dos documentários e das fotos da National Geographic? Contemplo a garganta profunda que se abre no horizonte à frente dos meus olhos, o ponto para onde os meus pés ainda me vão ter de levar. Inspiro. Bebo mais um gole de água. Enfrento o braseiro solar e digo-me: "Caminha!" Caminho.
Chego à beira do precipício. Aos meus pés o canhão esculpido pelos milénios de milénios de trabalho do Rio Colorado. A imagem apercebida pelos olhos é igual à das fotos da National Geographic e de todos os documentários. Não é preciso photoshop, nem filtros, nem ângulos especiais. Isto é a Natureza sem batota. Isto é o gigantismo que nos atordoa a pequenez. Morro de vertigens mas é a vertigem que me chama a aproximar-me da falésia desprotegida. "Vem!", chama-me. Vou. Agradeço, agora, como sempre. Peço que me imprimam a foto naquele sítio como se a foto de mim ali me fizesse mais dona do momento e do espaço. Porém, sei que não é a foto que me pertencerá na eternidade daquele momento. A foto é a memória que levo nos olhos e na alma. Essa é a foto que me acompanhará no caixão. Essa, cujas cores nunca se desvanecerão com o tempo.
Desfaço o caminho de volta sob as brasas que o sol atiça sobre esta paisagem milenar. Nem por um instante noto o calor...

27 de janeiro de 2017

Dia 11: Aviso (muito) sério

Sair do Utah e entrar no Arizona vem com um aviso: calor! Quero muito ir (e vou) a um sítio especial daqueles da National Geographic. Muito bem, quem lá quiser ir que se prepare. O primeiro aviso é um aviso de calor extremo (sim, já o tinha sentido...).
O segundo aviso é para levar água (bastante) porque o perigo de desidratação é real. Aqui não há ar condicionado ou paragens e abrigos amigos do turista. Isto é a natureza indómita em toda a sua pujança.
O terceiro aviso é para se usar calçado apropriado (seja lá o que isso for). Há pedras e rochas, areia, sítios escorregadios, inclinações abruptas.
O último aviso sintetiza tudo: levar chapéu, água e... nada de sandálias. Faço check a tudo menos às sandálias. Contemplo a subida arenosa que me espera, sinto bem o sol que me queima e, apesar de só levar o mínimo indispensável, a ma´quina fotográfica e água, sinto o peso de coisas leves que se tornam pesadas à medida que caminho sob inclemências. Tenho de caminhar sob o sol pesado de quente uma milha para ir e uma milha para vir. Parece pouco mas vai ser muito. É muito a cada passo. Porém, os meus olhos obrigam à caminhada. Querem ver. quero ir e é a essa vontade máxima que obedeço. Sempre esperam coisas boas ao cabo da dificuldade, não é?

23 de janeiro de 2017

Dia 11: Postais do Utah

É impossível ficar indiferente à estrada. Nela estão as vistas, o inesperado, a animação e o perigo. Os instantes são flashes que nos levam a imaginar narrativas: quem é o motoqueiro solitário?, que caravanas passaram nestas vastidões?, como foram feitas as estradas deste nada? Esvazio a cabeça do meu mundo para enchê-la de coisas destoutro.
Materializo o sonho da "great American roadtrip" e durmo nos motéis de beira da estrada em locais insuspeitos fora dos circuitos turísticos, o genuíno "off the beaten track". Depois de Monument Valley vou dormir a Blanding, Utah. Quem é que já ouviu falar de Blanding? Eu não, nunca. Até hoje. O serviço de net vai e vem. A cidade é uma amostra de urbanização no meio de um nenhures de pedra. Não se vê gente mas há um "trading post" que tem tudo, desde carne seca a tabaco, ou seja, os essenciais da vida na fronteira de um sítio e de um povo que nunca deixaram de ser fronteira, a fronteira do Oeste e dos grandes espaços a céu aberto.
 Sigo viagem passando novamente por Monument Valley. Fico feliz com a repetição até porque não muitas estradas que saiam de Blanding para outros sítios...

19 de janeiro de 2017

Dia 10: Utah ou talvez Marte

Entrar no Utah por Monument Valley não só é "monumental" como prenuncia o que o Estado tem para oferecer: vistas entre o terreno e o interplanetário. Por vezes parece que estou em Marte. Tudo à volta é rocha encarnada esculpida pelos milhões de anos do planeta. Quase parece ficção que paisagens destas existam num planeta azul. E isto é o Utah, o Estado recordista em parques nacionais dos quais Monument Valley é apenas o que está à entrada como quem vem do Arizona ou do Novo México.
Formações rochosas distintivas têm nomes que as tentam familiarizar ao viajante boquiaberto: Mexican Hat (a primeira), Navajo Twins (acima). E outras, tantas e muitas, anónimas e igualmente surpreendentes. Para onde quer que olhe tudo é rocha imensamente antiga na imensidão da paisagem terráqueo-marciana. Sinto-me ínfima em tempo e tamanho. Mas é isso que esta paisagem tem de sublime, o colocar-nos na nossa devida escala (e que não o esqueçamos).
Sigo viagem na estrada que parece não ter fim, ciente de que a estrada é o destino.

16 de janeiro de 2017

Dia 10: Entre Estados

Monument Valley fica numa intersecção geográfico-estadual criada pelo Homem. Sem nos apercebermos saímos do Novo México, entramos no Arizona, saímos do Arizona e entramos no Utah. Acho graça aos qualificativos dos Estados. Arizona, the Grand Canyon State. Utah, Life Elevated. New Mexico, Land of Enchantment. É tudo verdade. Entro no Utah por causa de Monument Valley mas regressarei ao Arizona para rever o meu "velho amigo" Grand Canyon (contarei, contarei). Para já é inspirar fundo e deixar o Utah "e(n)levar-me".

12 de janeiro de 2017

Dia 10: Monument Valley

A expectativa era grande. Trazia na mente todas as imagens icónicas das páginas da National Geographic, dos documentários, dos filmes do faroeste. Imaginava as caravanas dos conquistadores desta América que se aventuraram pradarias adentro para domar o Oeste. E eis que na curva da estrada, a imagem se abre em grande angular. É a imagem ícone tal qual a do meu imaginário. Monument Valley levanta-se da planície e enche-me os olhos.
Éons de anos de erosão e o que resta são esculturas megalómanas que se assemelham a catedrais gigantescas. É imenso. É mítico. Sinto-me uma insignificância face ao Tempo longo de eras que me cerca. Recolho-me em pensamentos e gratidões. Sempre a gratidão, essa forma de me dar conta do surpreendente sem cair no pasmo oco. Monument Valley... Cheguei. Estou aqui, maravilha-me.
No meio do Território Navajo, Monument Valley emana antiguidade olhando para nós, na nossa ínfima pequenez com a plácida sobranceria de quem ou algo que já viveu tudo e não se perturba com nada. Encho uma garrafa vazia desta modernidade que aqui trago invasora com a areia encarnada e fina do chão que já foi altura e altitude. Não deveria ter feito este acto vândalo mas a experiência telúrica é um chamamento a que não consigo e não me apetece resistir. Trarei Monument Valley comigo agradecendo-lhe pelos momentos de extasiada maravilha que me proporciona na alma e no olhar...

10 de janeiro de 2017

Dia 10: De volta à estrada

Numa roadtrip é difícil sair da estrada mas, depois de ontem em que a viagem se fez fora da estrada e rumo ao passado, hoje é à estrada que se regressa. A estrada da curiosidade, da visão grandiosa da América no que tem de estranho, simples ou majestoso.
É a estrada das vistas avassaladoras, a estrada dos desertos e da desolação. É também a estrada das coisas desconexas que nos reclamam a atenção do olhar e é a estrada do cowboy solitário.
A estrada é viagem e destino.

7 de janeiro de 2017

Dia 9: Ir dormir a Bloomfield

Deixo as ruínas de Chaco de olho posto nos céus em busca de nuvens suspeitas. 21 milhas de estrada selvagem separam-me do asfalto que me diz que cheguei ao meu mundo. São 21 milhas que levam quase duas horas a desfazer. Se chover em tempestade não há fuga, nem abrigo, nem auxílio. A civilização do presente está longe.
Há qualquer coisa de instinto primevo quando nos encontramos assim sem rede. É uma adrenalina de excitação e receio que nos vicia e nos faz regressar a mais perto de nós. Vou olhando para as nuvens e para o solo desértico incapaz de me decidir pelo céu ou pela terra. Aqui, não há preocupações mundanas de horários, agendas, compromissos e responsabilidades. Aqui, apenas me preocupo com a eventualidade da tromba de água repentina e nada mais. Quão libertadora não é esta preocupação?
E, por fim, o asfalto. Mais uma hora de condução até Bloomfield, cidadezinha de interior cuja existência eu desconhecia até ontem e que me vai servir de pernoita aqui na vasta imensidão do interior americano. Durmo sob as ruínas de Chaco e descanso em paz.

4 de janeiro de 2017

Dia 9: Chaco

Depois de horas de estrada acidentada surge no nada da paisagem árida a monumentalidade de Chaco. Perfeitamente camufladas, as ruínas são unas com a paisagem mal se distinguindo das rochas que as envolvem. Sinto-me instantaneamente transportada a outras eras e espaços e sinto a sacralidade que paira como aura e alma deste sítio. Inspiro o ar antigo. Há locais assim, mortos mas vivos. Locais passados que perduram mesmo quando a sua existência é uma sombra ténue do que foram. Assim é Chaco.
Há qualquer coisa de egípcio e de andino nestas ruínas misteriosas. Pouco se sabe desta civilização perdida. Percorro as salas da Grande Casa imaginando o que poderiam ter sido. Passo as mãos pelas paredes tocando as pedras perfeitamente ajustadas. Que tecnologia terá erigido estas construções? Que propósitos terão tido? Chaco é, afinal, um conjunto de povoados dispersos por este vale remoto, construídos seguindo o maciço rochoso com o qual se fundem. Quem habitou aqui?
As questões sem resposta fazem-me gostar ainda mais deste local de antiguidade. Perco-me em pensamentos convocados pelas imagens que me chegam aos olhos. A distância e os acessos deploráveis fazem de Chaco uma maravilha ainda pouco enxameada por turistas.
- O, you're my first Portugals! - Oiço na voz entre o perplexo e o quase histérico da funcionária do parque. Trabalha aqui há 25 anos e nunca recebeu visitantes de Portugal. Sorrio na complacência de que, pelo menos, sabe onde é Portugal ainda que não saiba o gentílico do país.
No walkie-talkie da ranger do parque escuto o alerta de que a entrada sul do parque acaba de ficar intransitável. As chuvas repentinas e grossas causaram uma daquelas inundações súbitas e o acesso ficou submerso. Olho para o céu a apurar se vem aí tempestade. Talvez... Despeço-me de Chaco já com saudades e peço a não sei quem ou quê, talvez à alma antiga que aqui habita, que os acessos difíceis continuem a deixar em paz este local. À minha frente duas horas da mesma estrada sem ser estrada que me levarão de regresso ao meu tempo. Peço também que não chova antes de eu chegar ao asfalto distante...