28 de junho de 2014

16 anos

Dezasseis anos, Mãe, e eu não consigo abarcar o que são dezasseis anos privados da tua fisicalidade Aqui. São dezasseis anos a menos para te reencontrar. Pensando assim, já não falta tudo, seja lá o quanto for o tudo. Sempre são dezasseis anos a menos e isso já é um belo percurso decrescente.
Sabes do que mais sinto falta? Das conversas. Ninguém conversa como tu nem nunca mais pude explorar conversas com ninguém como as que tinha contigo. Fazes-me falta ao intelecto. Como me fazes à alma e ao coração. Mas não estou triste, Mãe.
Este ano, este hoje, estou feliz porque não viste o capítulo de horrores que foi o meu casamento e o calvário do meu divórcio. Hoje sou só eu numa liberdade que ainda não acredito porque acho que nunca fui livre. Aquela doença que nos entrou em casa mal eu saí da adolescência. A doença que era contigo sem eu perceber porque é que tinha de ser contigo e não comigo que não fazia falta a nada ou a ninguém nesta vida. A doença que nos privou da liberdade e que tudo consumia. A doença que foi o meu projecto de vida nos seis anos que por aqui permaneceu. Depois veio o luto incomensurável e a prisão da tristeza; o meu casamento agrilhoado e agora estes outros seis anos de privação legal e instituída de liberdade. Portanto, acho que nem sei bem o que é viver em liberdade. Ainda me estou a habituar. Mas digo-te que estou a gostar e sei bem como irias ficar contente por me saberes livre se Aqui estivesses. Estás Aí e sabe-lo na mesma, eu é que não testemunho esse teu contentamento. O meu egoísmo de te ter Aqui é que me deixa consciente da perda de Ti, só isso. No resto, sempre me fizeste a filha mais feliz do mundo e isso não há perda, nem Aqui, nem Aí que mo tire.
Adoro-te, Mãe. Até daqui a menos dezasseis anos.

26 de junho de 2014

Desfecho de um divórcio: parte VIII

7 de Junho de 2014:
É Sábado à noite. A vila está em festa e há um toiro à solta no largo do chafariz. Gente na rua e eu sinto-me livre. Há anos que eu não me sentia assim e não sei se alguma vez me senti assim verdadeiramente. Acho que não. Forma duas décadas de penas e grilhões. Primeiro aquela tragédia toda que nos entrou porta adentro e nos mutilou no que de mais eterno tínhamos. Depois fugi para a frente num casamento desconexo e oco que me fez estranhar-me e desligar-me de mim para não me confrontar no erro. E, por fim, estes quase seis anos de batalhas numa justiça que teimou em não me divorciar. Sim, não me lembro do que é liberdade e, nestes últimos dias, dou comigo a pensar no que vou fazer com ela e como a poderei aproveitar. De súbito tenho este dom tão imenso e sinto-me diminuir ante a sua envergadura.
Vou sair com quem tanto me fortaleceu e acompanhou neste calvário. Falamos deste novo capítulo e do que agora se encerra. Quero finais, encerramentos e sei que fechar capítulos presume rituais. Este é um deles. Sair para jantar com quem me aturou tristezas e me vinha esperar a casa com o jantar que sabia eu não comeria se estivesse só. Falamos de um pretérito recente para não precisarmos voltar a falar dele. Ando pelas ruas animadas desta vila de campo e vejo tudo como pela primeira vez. Estou livre e, por muito que o verbalize, ainda não acredito.

24 de junho de 2014

Desfecho de um divórcio: Parte VII

3 de Junho de 2014:
Acordo para o dia seguinte. Sempre gostei da expressão francesa le jour d'après, transmite melhor o significado do dia posterior ao dia de um grande acontecimento. O meu jour d'après é hoje porque ontem foi o dia do grande acontecimento.
Acordo atordoada. Não estou nem feliz, nem aliviada. Contudo, não estou nem stressada, nem angustiada. Estou dormente. Lembro-me de acordar assim no dia depois de a Mãe ter morrido. Como é possível eu comparar acordar hoje com acordar para a morte da Mãe? Eu hoje acordo para a vida, naquele dia acordei para o luto e para a irremediabilidade da perda. Mais tarde, a minha irmã explicar-me-á que estou a viver um período de stress pós-traumático natural e expectável. A Ciência explica que a minha amígdala cerebral viveu quase seis anos em modo de sobrevivência, como se eu estivesse numa selva primitiva e me tivesse de defender contra predadores e, por isso, a chegada à segurança não se faz instantaneamente. O meu cérebro, que se habituou ao martírio, vai ter de se habituar à nova circunstância. A explicação faz-me sentido e acho-a surpreendente. Ao fim e ao cabo sou uma sobrevivente. Vivi em situação de guerra, psicológica é certo, mas guerra apesar de tudo e dias houve em que contemplei a morte de perto quando tudo me desabava e eu pensava que não teria forças para mais. Comparo-me a um veterano de guerra que sobreviveu. É uma pretensão arrogante comparar-me com quem sobreviveu a balas e morte iminente, mas é assim que me sinto.
Sempre pensei que no dia em que o meu divórcio tivesse um fim eu irradiaria felicidade e júbilo. Porém, seis anos e martírio longo operam em nós transformações profundas. Não tenho capacidade para exprimir felicidade. É como se estivesse seca por dentro. Como se tudo me tivesse sido sugado.
Passo o dia na faculdade a trabalhar e, de vez em quando, tenho um flash de consciência que me diz: Estás livre! Deixo o flash passar porque não o consigo sentir. Ainda não consigo sentir que estou livre. Os grilhões foram tão pesados e apertados que ainda me marcam e ainda lhes sinto o peso arrastado.
Saio da faculdade às 16.30. Tenho uma urgência enorme de ir tratar do meu Eu espiritual. Preciso começar a fechar este capítulo para poder sentir a paz e a liberdade que alcancei. Pego na carrinha e rumo a uma igreja que me foi bordão nestes seis anos e que descobri apenas porque vivi este divórcio. É uma igreja ao pé de um largo empedrado na parte velha de uma vila, hoje cidade. Fica entre dois edifícios que alojam os dois tribunais onde, durante quase seis anos, mantive uma pendência, em dois processos distintos, que me levasse ao divórcio. Tantas e tantas vezes que entrei naquela igreja depois das agruras do tribunal. Tantas vezes ali me refugiei pedindo auxílio regado a lágrimas que não tive vergonha de chorar em público. Ali eu era apenas filha de Deus. Uma filha em sofrimento pedindo perdão por ter casado. Uma filha pedindo força para suportar a cruz; pedindo luz e sentido para o que lhe estava a acontecer.
Dou conta de entrar na igreja como filha que não vem pedir. Entro nesta igreja e, pela primeira vez, apercebo-me de que venho em liberdade. Meu Deus, chego em liberdade. Desaprisiono as lágrimas que me correm grossas e quentes e não me importo que haja uma senhora ali também e que mas possa ver. Meu Deus, estou em liberdade!
Agradeço.
Olho para o Cristo a carregar a cruz. Agradeço que me tenha ajudado a carregar a minha. Estive no Gólgota durante o fim-de-semana. O calvário foram os quase seis anos de percurso martirizado. O Gólgota, o clímax de agonia do fim-de-semana. Sim, morri numa cruz de stress e ansiedade no fim-de-semana e hoje sinto que estou dorida e lassa do suplício. Sinto que me descem da cruz e descanso porque sei que unguentos vão sarar este corpo. Descanso o espírito nesse pensamento. Ainda estou ferida mas vou sarar. E agradeço ter quem me ame. Agradeço ter podido chegar aqui. Agradeço que a minha verdade tenha sido a Verdade.
E peço.
Não peço por mim. Peço pelas vítimas, pelos mártires, pelos injustiçados e pelos presos sem culpa. Peço pelas mulheres que vivem situações como a minha ou piores, porque há bem pior do que o que eu passei. Decido acender velas, eu, cuja religiosidade não é de velas. Quando as acendo não é em mim que penso. Ofereço as velas como luz para todos os mártires.
Saio da igreja em paz. Vou comprar flores porque há mais uma paragem obrigatória no meu percurso rumo à vida nova.
Páro no cemitério porque tenho de dar estas notícias à Mãe sem ser só em pensamento. Minha querida Mãe, que feliz sou que não tenhas vivido nesta Terra durante a infelicidade do meu casamento e a tragédia do meu divórcio.
Mutti, estou livre e sei que estás feliz. Adoro-te, Mãe!

20 de junho de 2014

Desfecho de um divórcio: Parte VI

2 de Junho de 2014:
É hoje. Não dormi quase nada. Felizmente tenho a manhã toda ocupada na faculdade e a mente pode abster-se um pouco deste dia e das suas consequências.
Vou almoçar com a minha melhor amiga: restaurante calmo entre árvores. A conversa agradável passa também pelos acontecimentos que poderão ocorrer hoje. Regresso à faculdade por volta das 14.30. Abro o mail e vejo uma mensagem dos meus advogados: a parte contrária, que levou quase seis anos a protestar contra as nossas contas, aceita-as e reitera o pedido para que possamos chegar a um acordo extrajudicial pelo que pede uma soma compensatória dez vezes inferior à que tem pedido nestes quase seis anos. Telefono aos meus advogados. Estou em choque. Choque por ver que a esperança tinha fundamento. Choque por estar incrédula que, depois de tanto me massacrarem, peçam dez vezes menos. Dez vezes!
Dou luz verde aos advogados que continuem a negociação e saio da faculdade rumo ao meu campo. Perdi toda e qualquer concentração e, hoje e agora, a minha vida assume prioridade.
Estou quase a chegar ao meu campo quando recebo novo telefonema. São os meus advogados. A parte contrária aceita a nossa proposta: quinze vezes inferior ao que eles pediam e eles aceitaram. Na coincidência cósmica, enquanto recebo este telefonema, vejo o carro do meu, agora sim, ex-marido passar por mim na direcção contrária no carro que eu lhe paguei. Eu rumo à vida, ele vai sair dela. Aprecio a coincidência neste dia em que estou tão alerta para tudo. Não o via há anos e, logo neste dia, justo neste dia, vejo-o na fugacidade de quem sai da minha vida.
Chego atordoada ao escritório dos meus advogados:
- É possível? - Pergunto. - Eles aceitaram a nossa contraproposta?
- Sim, Doutora. - Responde em serena calma a advogada. - Ganhámos! - Acrescenta, como que a dar-me a certeza de que isto aconteceu.
Não acredito que isto possa estar a acontecer! Nem em sonhos pensei que pudesse chegar a um acordo destes. Como é que alguém que ousa pedir-me milhares e milhares, que enfrenta dois processos judiciais como Réu à base de mentiras, que enfatiza a mentira, que recorreu a um escritório de advogados que só o nome dos sócios mete medo a qualquer juiz, que se usou de todos os esquemas permitidos pela justiça durante quase seis anos aceita um acordo quinze vezes inferior ao que queria? Um acordo que não lhe vai chegar para os honorários desses advogados e para as custas judiciais?
Ganhei! A minha verdade era a verdade. Continuo na perplexidade. Agora que há acordo e que tudo vai acabar, parece-me tudo simples demais. Seis anos para isto? Eu fui refém da lei e da justiça e de um homem mau para isto? E a justiça deixou?
E esse homem mau sai daqui com menos de um terço do que aquilo que eu inicialmente lhe ofereci? Que vergonha! Quando a justiça finalmente pediu provas e eles se viram na contingência de as não terem mudou tudo. E mudou tudo na rapidez fulgurante. Só me pergunto porque é que a justiça não pediu provas à parte contrária logo de início e me deixou neste limbo de sofrimentos e liberdades suspensas durante todo este tempo?
Ganhei! Mas estou cansada demais para estar exultante. O calvário ainda não acabou. Há toda uma teia burocrática a seguir e logo após sigo para Estrasburgo. A minha luta agora vai ser travada em sede internacional contra o Estado Português. Ganhei a batalha contra o homem mau mas o Estado deste país pretensamente civilizado, moderno e democrático não pode ficar incólume. O meu divórcio ainda não acabou. A justiça deste país não me serviu, bem pelo contrário, só me atrapalhou. A justiça deste país foi conivente com mentiras ditas e lavradas ao arrepio de provas durante quase seis anos e isso eu não posso tolerar. Por todas as mulheres injustiçadas como eu, por todas as que não têm os meus privilégios, a minha voz, a minha instrução e os meus recursos, por todas elas e porque não posso ser cúmplice do que me sucedeu, sigo para Estrasburgo.

18 de junho de 2014

Desfecho de um divórcio: Parte V

30 de Maio e 1 de Junho:
O fim-de-semana mais longo da minha vida. A minha libertação pode ocorrer já no dia 2 de Junho ou o calvário seguirá sem fim à vista e mais mentiras, expedientes, morosidades. Agora que há esperança, é a esperança que me mata. Tão perto do fim, o meu corpo, o meu cérebro, o meu coração convergem em uníssono para a possibilidade de o desgaste continuar e isso dá-me náuseas, palpitações e falta de sono.
Por coincidência da vida, este fim-de-semana de ânsias é o primeiro fim-de-semana em que tenho os meus dois sobrinhos comigo. O Manel já passou vários fins-de-semana com a Tia e temos os nossos hábitos e a nossa logística mas esta é a primeira vez que a Maggie se junta a nós nestes seus doze meses de existência. Corre tudo sobre rodas e percebo que sou uma Tia-mãe com capacidade para cuidar e tomar conta dos meus dois sobrinhos em simultâneo. Porém, a minha mente nunca está longe do dia 2, a Segunda-feira que tudo pode mudar, a Segunda-feira que tudo pode continuar no pavor do meu, aparentemente eterno, divórcio.
Mortifico-me por não conseguir viver este fim-de-semana só pelos meus sobrinhos, crianças felizes que fazem a minha vida completa. No meu pensamento, invectivo a justiça deste país que me deixa neste estado de nervos e amaldiçoo o homem que me mantém refém de mentiras e que, sempre e só, me viu como um livro de cheques, querendo fazer deste divórcio um passaporte milionário. Perturbo-me por o meu divórcio infame e nojento me retirar espaço emocional ao usufruto dos meus sobrinhos.
Na noite de Sábado, Ela passa à minha porta. A Virgem Peregrina de Fátima passa à minha porta. Vou à varanda de mansinho sem que o Manel e os seus três anitos me vejam porque ainda não começámos a sua educação religiosa. Espero a Virgem que já vejo ao fundo da estrada. O Manel vem juntar-se a mim. Não faço nenhum comentário ao que se passa para não lhe gerar influências na mente tão moldável de três anos:
- É a minha festa preferida! - Grita animado, e entre pulinhos contentes, quando vê a Santa passar. Não sei como ele adivinha que isto é alguma festa. Não sei o que o leva a dizer que isto é algo preferido. Atribuo a sua reacção apenas à originalidade da situação na sua vida tão curtinha. Sei que o meu silêncio a respeito de religiosidades e doutrinas nunca o terá influenciado mas fico a pensar na estranheza das suas palavras. É no silêncio que peço à Santa protecção para os meus sobrinhos e conscientemente não peço auxílio para a nojice do meu divórcio. Não tenho direito. Não posso conspurcar a oração com algo tão vil e mesquinho como o meu divórcio. Este é o meu calvário e eu sozinha carrego a cruz.
No Domingo à noite, a minha irmã e o meu cunhado vêm buscar os meus sobrinhos. Jantamos todos juntos e eu desabo. O stress e a angústia levam a melhor sobre a minha compostura e sobre a minha máscara. Sinto que vou ter um enfarte tal é o grau de ansiedade mas o amor que me rodeia ampara-me. Estou sózinha no calvário mas há Verónicas que me limpam as lágrimas. Amanhã é o dia.  

16 de junho de 2014

Desfecho de um divórcio: Parte IV

28 de Maio de 2014:
O prazo dado à parte contrária para apresentar provas em tribunal termina dia 2 de Junho. Continuo ansiosa. Durmo a custo. Ainda tento ajuda química mas os meus níveis de stress são de tal ordem que nem a medicina do século XXI consegue penetrar no meu corpo. Quero tanto a liberdade. Desenvolvi, nestes últimos seis anos, uma empatia sólida com todos aqueles que foram presos sem culpa, todos aqueles que se vêem privados de liberdade e todos os injustiçados. Vivo num cárcere legal num país democrático que, presumivelmente, respeita os direitos humanos. Seis anos de tribunais levaram-me a ler a Constituição, na qual anoto todos os artigos perante os quais a minha cidadania tem sido violada. A minha vida é um défice de Constituição.
Penso e repenso nas mulheres que não têm a minha capacidade financeira para suportarem custas e advogados durante seis anos de justiça lenta e burocracias medievas. Penso nas mulheres que não têm o meu nível de instrução e o meu empowerment. Penso nas desgraçadas oprimidas pela injustiça de bullies resguardados pela morosidade e inoperância do nosso sistema judicial. Seis anos de martírio a requerer algo tão legítimo como a oportunidade de emendar o erro tremendo que foi o meu casamento, é essa a minha vida de hoje.
Como católica, mortifico-me por não ter conseguido manter a promessa que fiz perante altares divinos. Confessei-me por quebrar os votos eternos que pronunciei. Esperei do Padre, meu confessor, a penitência devida. Ouvi apenas: "A Igreja não quer o teu sofrimento". A Igreja não quer o meu sofrimento, mas quere-o a justiça dos homens que, num país democrático e moderno me impede o divórcio vai para seis anos. Seis anos sem ser senhora de mim: dos meus bens patrimoniais, do meu nome, do meu querer. Seis anos de prisão sem grades.
Apresento as minhas contas à outra parte. A minha generosidade inicial de oferecer dinheiro e bens esvaiu-se, transformando-se agora na frieza de longas folhas de Excel que expõem a crueza dos números. E os números não sentem. Os números não querem saber de mortificações, de generosidades. Os números são-no. A Matemática é a racionalidade em estado puro. Apresento números.  

12 de junho de 2014

Desfecho de um divórcio: Parte III

22 de Maio de 2014:
Há três dias que estou em ânsias. Um despacho de um juiz novo no meu processo cível contra o meu ainda-marido dá-lhe dez dias para apresentar provas. Tento conter a esperança e a ansiedade mas é em vão. Não consigo desviar o pensamento do meu divórcio, da dor destes quase seis anos, da injustiça, da lentidão e inoperância dos tribunais, da vitimização dos réus, dos expedientes dilatórios. Sobretudo dói-me a privação da liberdade. Passaram três dias sobre o despacho que me pode libertar de vez e os sete dias que faltam para o prazo expirar causam-me o sofrimento da antecipação da continuação da litigância e a adivinhação das novas mentiras. A mente fervilha-me, enquanto o coração quer a liberdade e já mal pode esperar que aconteça.
Há um telefonema: a parte contrária quer negociar um acordo extra-judicial que ponha fim a ambos os processos antes de expirar o prazo em que se têm de pronunciar.
Suprema ironia. Em quase seis anos nunca quiseram negociar e receberam com escárnio todas as propostas que fiz. Ofereci dinheiro para um recomeço de vida e juntei um carro ao pacote. Na consciência de ter sido eu a requerer o divórcio quis que a parte contrária saísse bem. Renegaram tudo. Tudo desprezaram na arrogância de quem pede sem saber o que pede e pede por pedir e por despeito. Aguentei.
Quase seis anos depois querem negociar fora dos tribunais que usaram contra mim. Que eu faça as minhas contas (que estão feitas há já três anos no processo que corre paralelo no tribunal de família). Não sei o que mais querem de contas. O justo era que eu deixasse a justiça correr, esperar o fim do prazo e deixar-me serenamente observar arder uma pira funerária de mentiras. Mas estou exangue. Aceito tentar uma negociação e, sim, apresentarei contas de novo, uma vez que a parte contrária nunca as apresentou.
Ao cabo de quase seis anos de me supliciarem, sinto que os meus algozes capitulam no enredo de falsas declarações que construíram em sede judicial num país onde o perjúrio não é julgado por ser cultural. Estranhamente não me sinto contente por a minha verdade estar a emergir.
Com seis anos de guerra em cima, contentamento e felicidade são sentimentos que o meu corpo e o meu cérebro já não conseguem processar. Só penso na liberdade que me foi tirada, na vida que me foi impedida. Por muito que a minha verdade vá ganhar, foi a minha vida que eu perdi e nenhum contentamento se sobrepõe à vida perdida.

9 de junho de 2014

Desfecho de um divórcio: Parte II

19 de Maio de 2014:
Recebo, para conhecimento, um despacho do juiz do tribunal cível onde tenho um dos meus dois processos de divórcio a correr. O juiz mudou. O processo deu entrada em 2008.
O novo juiz "convida" o réu a fazer prova de montantes pedidos, justificativos para os mesmos e proveniências de dinheiros no prazo de dez dias.
Espanto-me e não quero acreditar que foram precisos quase seis anos de nada e a mudança de um juiz para a justiça requerer provas à parte que nunca as prestou.
Na incredulidade do súbito, invade-me uma onda de esperança e eu tenho receio de ter esperança à conta de todas as esperanças frustradas destes quase seis anos. Tento refrear a esperança e tento conter a ansiedade dos próximos dez dias.
Dez dias. Dez dias é o que me separa da liberdade ou da continuidade da litigância da mentira. Temo a última na exaustão que levo deste percurso de enviesamentos e contrariedades. Anseio pela primeira mas tento convencer-me de que não me posso deixar enganar por miragens. Queria tanto que o fim fosse isto e que fosse agora. Sei que da parte contrária não virão provas. Poderão vir novas revoadas de mentiras e vacuidades e é isso que me extenua e me faz descrer da justiça lenta e crédula nos não factos e nas não-provas. Peço forças para o que me espera na batalha. Peço a pressa dos dias enquanto fecho os olhos para não me pôr a visualizar metas. O coração palpita-me de stress e não consigo dormir.
Meu Deus, que seja desta.

5 de junho de 2014

Desfecho de um divórcio: parte I

Dia 18 de Maio de 2014:
Chego de Paris para a vida de sempre e o hábito, que se me tornou doença crónica prolongada, de conviver com dois processos de divórcio pendentes nos tribunais portugueses desde 2008.
Enquanto os meus concidadãos vivem no usufruto das suas liberdades e garantias, eu encontro-me refém, numa situação de limbo, entre o não ser casada e sê-lo oficialmente à face da lei.
Não posso, por exemplo, dispor dos bens que herdei dos meus pais, ainda que o regime do meu casamento não seja a comunhão de bens. Neste país, preciso sempre de uma autorização do cônjuge para alienar património que seja só meu e não do casal. Não posso adoptar uma criança porque sou oficialmente casada mas não o sou e a lei para a adopção é muito explícita quando diz que podem adoptar as pessoas singulares ou casadas: eu não sou nem uma coisa nem outra. Não posso casar, se assim o quisesse, porque continuo casada. Em caso de necessidade, não poderia contrair um empréstimo. Não tenho direito a algo tão fundamental como o nome, porque, estupidamente, fiz o que o Padre pediu e adoptei o sobrenome do meu então e ainda-marido. Desde 2008 que as minhas liberdades são profundamente limitadas.
O meu divórcio, contam-me, não é prioritário na justiça por não envolver menores nem bens comuns. Entendo, embora não perceba como pode a justiça demorar-se há já quase seis anos. Assim como não entendo todos os expedientes dilatórios que têm sido permitidos à parte contrária, ou seja, à parte do meu ainda-marido, o Réu, para fins processuais.


Há quase seis anos que dois juízes, um em fórum cível, outro em fórum de tribunal de família, suspendem o decurso da minha vida e não compreendo a dificuldade, a delonga de julgar o que me parece um processo rápido. É um divórcio litigioso, certo, embora à luz da nova lei do divórcio se intitule um divórcio sem consentimento do outro cônjuge. Porém, é um litígio relativo: uma parte pede o divórcio e a consequente dissolução do casamento e a outra pede, bem... pede umas largas dezenas de milhar de euros de compensações. É um litígio financeiro, em suma.
Nestes quase seis anos embrenhada em tribunais, aprendi a duras penas que a justiça não olha com bons olhos mulheres como eu. A justiça apieda-se das desgraçadas, não das mulheres auto-suficientes e suficientemente resilientes para não darem o braço a torcer. A justiça não gosta de mulheres que apresentem peças processuais com quatrocentos e tal anexos de prova factual. A justiça prefere a vacuidade de "O Reú sempre dirá" qualquer coisa insólita à qual não se acrescenta prova documental, nem uma, uma vez que fosse. Sim, a justiça acoberta a falta de prova há quase seis anos e eu que pensava que prova fosse a essência da justiça.


Nestes quase seis anos houve seis diligências para audiência. A Autora e seus representantes legais compareceram sempre. O Réu compareceu a uma; os representantes legais do Réu compareceram a duas e, curiosamente, compareceram sempre com atrasos e, da vez em que o Réu compareceu, os seus representantes legais não compareceram nem avisaram o tribunal, pelo que a diligência não se realizou. Ou seja, em quase seis anos, houve efectivamente duas diligências de audiência, numa das quais os representantes legais do Réu nem sequer tinham procuração do Réu.


Já a Autora levou as maiores humilhações da Senhora Juiz que, numa das audiências lhe pediu para descruzar a perna, porque "Ninguém se senta à minha frente de perna cruzada", enquanto que a Mandatária do Réu pôde continuar com a perna cruzada e dossiers em cima da dita perna cruzada. Também a Autora, que não nasceu nesta língua, entenda-se, teve problemas em perceber a dita Juiz da primeira vez que a mesma lhe pediu "Identifique-se". Ora, no entendimento da língua portuguesa possuído por esta Autora não-nativa falante "Identifique-se" significa "faça prova da sua identidade". Ocorre, que, enquanto a Autora diligenciava para mostrar o seu bilhete de identidade, a Juiz lhe perguntou "O que é que está a fazer? Identifique-se significa diga o seu nome". Agradeci a instrução em língua portuguesa porque, afinal, também aprendemos umas coisas no tribunal.


18 de Maio de 2014: este é o cenário da minha vida.