19 de junho de 2018

Eichstätt

É noite cerrada quando chegamos. Nos vinte e poucos anos que medeiam desde que aqui estive, mal reconheço esta vila pacata. Mudou imenso, mesmo que se mantenha a mesma. A universidade ocupou tudo e tudo é agora a universidade e da universidade. O carro percorre as ruas devagar até eu me encontrar. Reconheço o edifício, a porta da Orangerie por onde eu passava para ter aulas num curso pomposamente chamado "Literatura Experimental" e que frequentei por ter ganho uma bolsa de estudo.
Não me lembro porque é que escolhi, de entre todas as escolhas possíveis, vir estudar para a Baviera. Os meus pais avisaram-me que não ia perceber a língua, surpreendidos por a minha decisão ser vir tirar um curso a uma universidade chamada "Católica", num estado conhecido pelos desafios linguísticos que põe a quem pensa saber alemão. Vim. Ignorei conselhos paternais, que entendi como paternalistas apenas para ter de morder a língua quando descobri que aquele alemão não era o "meu" alemão e que eu fazia figuras menos tristes se falasse em inglês em vez de embirrar que tinha, porque tinha de falar alemão porque, bem vistas as coisas eu estava no país onde nasci. "Erros meus, má fortuna..." e a natural estupidez teimosa da juventude.
Desafios linguísticos à parte, fui feliz aqui. Fiz muitas amizades, aprendi umas coisas, baldei-me a outras, levei a humilhação de me dizerem, na aula de música, que não havia lugar para um saxofone-alto e que o melhor que eu tinha a fazer era tocar ferrinhos, esse cúmulo-portentoso instrumento do meu calvário por aquelas aulas.
Vinte e tal anos depois trago aqui o meu marido. Conto-lhe a história de Eichstätt, cidade-bispado que ainda se mantém nesse orgulho auto-intitulado Bischoffstadt Eichstätt. Aqui os bispos eram príncipes ou os príncipes eram os bispos. Pouco admira, portanto, que a universidade se chame Universidade Católica de Eichstätt, ou no vernáculo Katholische Universitätt Eichstätt, ultimamente Katholische Universitätt Eichstätt-Ingolstadt (Ingolstadt a sede da Audi).
É uma cidade-jóia, um nenhures repleto de monumentos e agora completamente rendido à universidade que ocupou todas as residências, palácios e todos esses etcs. devidos a uma corte bispal. Não sei porquê vem-me à cabeça os Bórgias e a sua mistura pouco ortodoxa entre o laico e o religioso, o poder clerical ao serviço do poder temporal e vice-versa.
Foi aqui que fiquei a saber que me sinto mais portuguesa do que alemã, que tenho saudades da claridade límpida do Verão meridional face ao amarelado desta luz. Aqui também descobri que tenho de saber que há mar por perto mesmo que eu não o veja ou raramente dele me abeire. Posso sentir-me alemã em muitas coisas, mas sou essencialmente portuguesa. "Essencialmente", advérbio diferente de completamente. Sou um híbrido com tendências mais para um lado do que para o outro. Levei anos a render-me a esta evidência e, nem sempre tenho a certeza de estar pacificada com esta minha identidade de certa forma bífida. Seja como for, há um hino que me arrepia a medula e uma língua que dominei ao ponto de me ser primeira, ainda que não cronologicamente. Tanto o hino, como a língua têm o mesmo nome.
Revejo Eichstätt pela noite dentro mas sem, no entanto, embarcar numa viagem ao passado como noutros locais nesta viagem. Eichstätt foi uma passagem efémera na minha vida. Passou e eu segui em frente. Hoje venho só dizer "olá" e mostrá-la ao meu marido. Deixo a cidade entregue às novas gerações de estudantes que por aqui passam e sigo caminho.
- Queres voltar amanhã com luz do dia? - pergunta-me o meu marido.
- Não.
Não preciso regressar. Vim ver o que queria. Mostrei o que queria. Cumpri aquilo a que vinha. Adeus Eichstätt. Talvez o "adeus" português e não um "Auf Wiedersehen" alemão que implica um "voltar a ver".

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