8 de julho de 2018

O que não se deve dizer tem de ser dito

Passamos os últimos dias desta viagem numa Gasthof tradicional em Bergkirchen, uma pequena vila a oeste de Munique. Uma Gasthof é uma espécie de hotel que se especializa em restauração e festas. Tem quartos para hóspedes e vive para entreter e socializar com boa comida e melhor bebida. Passamos dias de lentidão passeante, provamos tudo o que seja comida típica, e quanto mais impronunciável melhor, e fazemos provas e mais provas de cervejas (nenhumas, no entanto, que nos superem o gosto pela Kolsch de Colónia). Damos uns saltinhos a Munique, onde compro umas sabrinas alusivas à Oktober Fest, e vamos passeando por estas redondezas rurais da Baviera profunda.
É quando o meu marido me confessa o que confessa e que eu já desconfiava sem nunca o pronunciar, sem nunca chamar o assunto.
Nos três dias em que esteve na Alemanha antes de eu chegar e de irmos ter com os nossos padrinhos para começar a viagem propriamente dita, aproveitou para ir visitar uns amigos a Erfurt (nas cercanias de Weimar). Até aí nada que eu não soubesse.
- Também fui a Dachau - informa-me, tentando dar ao assunto a informalidade que ele não tem.
Não me impressiona e não me desgosta. Imaginei que ele, estando aqui, fosse a um sítio desses na minha ausência. Também sei que, por pudor e delicadeza para comigo, não mo iria dizer de antemão e nem talvez nunca.
- E então? - pergunto-lhe enquanto jantamos iguarias tradicionais no restaurante com grossas vigas de madeira da Gasthaus. Falar do Holocausto ao jantar é, só por si, ignóbil por fazer parecer banal um assunto conspurcado.
- Saí enojado a detestar tudo na Alemanha e a pensar que iria odiar estes dias e este povo - responde.
- Bem sei. É odioso.
Prometi a mim mesma nunca visitar um campo de concentração. Quando estive a estudar em Eichstätt, muitos amigos meus, estudantes estrangeiros, foram a Dachau, quiçá dos campos mais infamemente famosos aqui na Baviera. Não fui. Nenhum interesse me move ou me faz querer fazer uma visita dessas. O Nazismo é-me detestável e incompreensível. A capacidade da maldade agonia-me. Foram os alemães que fizeram aquilo. Foram e é um passado indesculpável, inapagável e que eu desejo nunca seja branqueado ou esquecido.
- E, agora, depois destes dias, o que sentes? Como vês a Alemanha que te mostrei? - pergunto na curiosidade de saber se a monstruosidade do passado aniquila o presente e a capacidade de se poder gostar deste país.
- Mixed feelings - responde-me. Percebo-o. Sei exactamente o que quer dizer e o que deve estar a sentir. Explica-me que se surpreende como é que um povo que viveu aquilo, que foi e é odiado, e que foi destruído se levantou para ser o que é. Diz-me que tem de admirar um povo que vive sob este peso histórico constante e que se soube reerguer das cinzas e do asco mundial. Também me diz que descobriu que não são os vilões antipáticos e frios que julgava serem. Respondo que sim a tudo e esclareço-o de que a Alemanha que ele viu comigo não é a Alemanha vista do exterior, é a Alemanha vista de um limbo, de uma terra-de-ninguém e que é a minha perspectiva. Eu habito nesse hiato. Estou fora e dentro. Não sou de cá mas sou. Vejo a Alemanha de longe e de perto, do mesmo modo como vejo Portugal. Ao fim destes anos todos desta hibridez, aprendi a fazer dela a minha natureza. Sim, claro que sou portuguesa mas não estranho a Alemanha. Como poderia?
Gosto de ouvir o que ouço ao meu marido. Viu um país inteiramente ressuscitado dos escombros. Não há quase monumento nenhum que não tenha sido bombardeado. Percebeu que o Nazismo foi uma aberração histórica criada no seio de uma nação civilizada e amante da liberdade. Não é uma desculpa. Longe disso. É um facto que ainda não obteve explicação e que, creio, nunca a vai ter.
Não me posso jamais esquecer deste passado do país que me viu nascer e do qual só guardo boas memórias, boas impressões e boas pessoas. Partilho com os alemães o viver sob o jugo do fardo histórico e sórdido. Não o falamos. Porém, não o esquecemos.
No último dia, mostro algo ao meu marido. Um cemitério. Calhou a ser em Bergkirchen mas podia ser em qualquer lugar neste país. Não preciso dizer-lhe o que lhe quero mostrar. Ele adivinha. Campas e campas de soldados de baixa ou nenhuma patente, de oficiais. Os mortos da guerra. Em algumas campas, fotos a sépia de rostos jovens em uniforme, miúdos de dezanove, vinte anos, mortos na frente russa. Noutras, fotos de rostos sérios e mais velhos, generais, comandantes disto e daquilo, mortos em solos distantes à conta da loucura da guerra.
- Percebes? Só houve mortos. Mortos e mortos e sofrimento de um lado e do outro. De todos os lados. A guerra é vil - digo, notando que o meu marido talvez esteja a fazer uma descoberta. A descoberta que houve este lado, o lado do inimigo e o inimigo também tinha gente, do mesmo modo que tinha monstros.
Escondida no cemitério, longe de olhares curiosos ou inquisidores (como os nossos), uma cruz e um pequeno monumento à memória dos filhos da terra mortos na guerra. Silêncio. Tal como temos os nossos mortos em La Lys e na Guerra Colonial e os nossos panteões a esses filhos tragicamente perecidos, aqui também os há. Vemo-los como o inimigo, sim. Só que aqui o inimigo não tem esse nome. O inimigo aqui é o próprio, o "Eu" que está do outro lado. Tenho um novo assomo de mixed feelings por ver que o pequeno panteão aos mortos da guerra é aqui uma coisa envergonhada e escondida, como se não se pudesse lembrar às claras os participantes naquelas guerras que eram filhos, pais e maridos de alguém. Dá pena mas não dá perdão.
Espero, nestes nossos tempos em que tomamos tudo por garantido, em que facilmente nos esquecemos do passado e em que, com ligeireza, desprezamos a paz consigamos lembrar-nos que o mal existe e está mais perto do que imaginamos. Que jamais esqueçamos que a guerra existe, a guerra é e a guerra começa sem que dela nos apercebamos...
Deixo que os fiéis, vestidos nos seus trajes típicos domingueiros, saiam da igreja onde assistiram ao rito. Tenho esse pudor. Sei que são os descendentes daqueles mortos, os descendentes daquele passado que quero mostrar ao meu marido. Quando, por fim, temos o cemitério à volta da igreja abandonado e só para nós, convido-o a olhar os mortos. Acho que percebe, por muito difícil que seja perceber.

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