29 de setembro de 2017

Dia 3: Kloster Andechs

Entre o Starnbergersee e o Ammersee, os dois maiores lagos aqui da região dos Cinco Lagos, fica Kloster Andechs (a Abadia de Andechs), famosa como local de peregrinação e mais afamada ainda pela sua produção de cerveja (algo muito comum nos conventos alemães. Em Portugal dedicavam-se aos doces de ovos, na Alemanha à cerveja).
Localizada no cimo da Heilige Berg, a Montanha Sagrada, a abadia comanda uma vista desafogada sobre a bucólica paisagem do sul da Baviera. De súbito, somos apanhados num tempo sem tempo. No entardecer já livre de turistas e peregrinos, o espaço retoma a solidão de si, a quietude em que primeiro viveu quando foi fundado na Baixa Idade Média pelos monges beneditinos e pelos condes de Andechs que para aqui trouxeram inúmeras relíquias.
No Biergarten do mosteiro, um terraço amplo sobre a paisagem, um ou outro turista mais renitente que aprecia o ocaso neste espaço entre o sagrado e o profano. No silêncio envolvente mal se distinguem as vozes de convívio. Percebo que seja o local indicado para se ter sepultado o compositor Carl Orff, sim o dos Carmina Burana: o silêncio magistral sobre a paisagem, o templo medieval que ecoa ao tempo em que primeiro foram escritos os códices que deram origem à sua obra-prima. Se mais alguma vez for a Kloster Andechs levo uns headphones para ouvir o "O Fortuna". Que excepcional banda sonora...

27 de setembro de 2017

Dia 3: Cruzeiro no Starnbergersee

Starnberg é uma estância balnear muito bem frequentada a sul de Munique. Não sei se é a cidade que empresta o nome ao lago, Starnbergersee, se vice-versa. É um local de veraneio associado às classes políticas e à aristocracia. Aqui tinha a imperatriz Sissi a sua residência de Verão e aqui morreu o rei Ludwig II. Concordo que, para quem viva num país de areais oceânicos a perder de vista, associar um lado rodeado de verde a praia é uma estranheza. Mas não é tanto assim. Não há ondas nem marés, é uma verdade, e surf também é coisa que não se faz. Porém, toma-se banho de água e sol, faz-se vela e relaxa-se. Enfim, não entremos por esse campo.
Está outro dia lindo de Verão e um cruzeiro no lago vem mesmo a calhar. Embarcamos. A toda a volta mansões luxuosas. A da Sissi atrai todas as atenções. Nascida na Baviera, Elisabeth casou com o herdeiro do império austro-húngaro e seguiu a ter com o noivo num cortejo esplendoroso pelo Danúbio abaixo até chegar a Viena. Era, contudo, aqui na Baviera que se sentia em casa e aqui que gostava de passar os Verões. É dela a mansão-palácio, hoje ainda em mãos privadas, que vemos semi-escondida entre a folhagem luxuriante. Deixou um mito atrás de si: Sissi, a imperatriz deslumbrante. Não foi feliz. Anoréctica, depressiva, sobreviveu ao suicídio do único filho varão e foi assassinada nas margens do Lago Genebra por um anarquista italiano. Trágico destino.
Destino trágico teve também o rei bávaro Ludwig II, o tal a quem chamam o Rei Louco e que mandou construir os palácios de sonho que inspiraram os castelos das princesas Disney. Morreu aqui no Starnbergersee, na margem oposta à da casa da imperatriz Elisabeth, em circunstâncias nunca explicadas. Tinha quarenta anos e estava falido à conta das megalomanias dos seus palácios, o último dos quais, Herrenchiemsee, nunca chegaria a ser concluído. Uma capela votiva assinala o local onde o seu corpo foi encontrado a flutuar sem vida.
 A meio do lago, a única ilha, Roseninsel, património UNESCO pelas suas casas pré-históricas lacustres, e local onde Ludwig II recebia amigos como a prima Sissi, a czarina russa, ou o compositor Richard Wagner.

Já no fim do cruzeiro, os meus padrinhos e o meu marido acenam exultantes aos barcos que passam. Eu sorrio. Ninguém acena do outro lado e eles sorriem perplexos por ninguém lhes acenar. O choque cultural tem destas pequenas coisas... Nada que nos desmorone o entusiasmo.

25 de setembro de 2017

Dia 2: Cama feita à alemã

Conhecemos um povo pela cama, ou melhor, pelo uso que lhe dá. Aqui, cada um gosta da sua independência na hora de dormir. Ou as camas são separadas, ou os colchões são separados mas a cama é a mesma, ou cada qual tem o seu edredão caso o colchão seja o mesmo. São muitas equações que tento explicar ao meu marido que não consegue perceber porque é que um lado da cama está feito de uma maneira e o outro está de outra.
- Mas nós pedimos "double bed" - diz-me como se fosse universal o conceito de cama dupla.
- Darling - começo, um tanto ou quanto paternalisticamente, - isso aqui não quer dizer nada. Aqui, todas as camas são duplas. Agora, se quiseres uma cama de casal como em Portugal, tens de dizer que queres uma cama francesa e isso para os alemães é que é um conceito um bocado estranho.
Vai-me demorar uns dias a explicar e desconfio que ele não chegou a perceber...

22 de setembro de 2017

Dia 2: Passeio em Tegernsee

A tarde está azul e quente. Há gente estendida ao sol nas margens do lago, gente que nada com patos que se refrescam na água fresquinha. O calor aqui tem propriedades densas. Não é o calor mais leve e seco de Portugal. É, diria, um calor mais amarelo e menos branco. Lisboa aqui nunca teria a sua incomparável luz branca. Passeamos ao logo das margens do lago, exploramos a vila entrando pela Rosenstrasse, a rua principal, e avistando, ao fundo, a sua Maibaum (explicarei o que é uma Maibaum, uma árvore de Maio noutro post).
Acho sempre lindas as Maibäume e fico sempre uns minutos encantada a ver as figuras que sobem poste acima e que dizem da cidade o que é e o que a faz.
Decididamente, estamos na Baviera. As casas com as fachadas pintadas, as portas e as janelas decoradas, o verde garrido e o azul profundo da paisagem envolvente, as cores fortes que combatem a tristeza dos dias de Inverno e que sobressaem no Verão. Inspiro Tegernsee neste dia de calor acima dos 30º. No regresso a Starnberg, contornamos o lago e apanhamos, como não poderia deixar de ser, uma trovoada de chuva forte que nos lembra que estamos longe do Meridião, caso o fôssemos esquecer.


20 de setembro de 2017

Dia 2: Tegernsee

Quando decidimos (ou melhor e mais bem dito), quando eu decidi que este ano a Alemanha era "a" viagem a fazer, poderia ter começado por qualquer lado. Nasci no Norte, vivi mais a Norte, estudei no Sul e a minha família, que é originária do estado de Brandenburg, mora em Berlim. Achei melhor começar pelo Sul, pela Baviera que é um estado de absoluta beleza paisagística e patrimonial e onde o Verão é mais Verão do que no Norte. Além disso, enquanto os meus padrinhos americanos aqui estivessem não ia sujeitá-los às emoções e lembranças que me esperam no Norte. Ademais, eu estudei na universidade em Eichstätt aqui bem na Baviera e, por isso, é um estado que conheço de lés a lés e onde posso fazer de anfitriã perfeita e conhecedora.
Depois dos reencontros de ontem e de assentarmos arraiais em Starnberg, proponho irmos almoçar a Tegernsee, um outro lago a poucos quilómetros de Starnberg. Estamos na região dos cinco lagos. O Starnbergersee (See é lago em alemão) é o maior e está rodeado de outros lagos igualmente encantadores e azuis tais como o Tegernsee ou o Ammersee. À falta de mar, os alemães desenvolveram o culto dos lagos que funcionam como autênticos locais de veraneio e praia. Aqui, uma estância balnear tem um lago em pano de fundo e a água, surpreendam-se, não é tão fria como em certas praias da nossa bela e lusa costa oeste.
Almoçamos com vista para as cores do lago e dou a mão à minha madrinha, feliz de os ter ali, feliz por estar ali, feliz por a vida me dar este Agora.
Happiness is this: this moment, this place, these three people around me. So simple and so whole...

18 de setembro de 2017

Dia 1: Celebrar

Assim que chego ao lobby do hotel vejo-os. Estão devidamente prontos para começar a viagem. Chegaram há uns dias. Esperam por mim do lado de fora da porta sem saberem que nem saí do aeroporto e que entrei no hotel por um elevador que dá para um dos terminais. Terceira mudança de língua num dia que me começou às seis da manhã e ainda não chegou ao almoço. Alegro-me nesta e desta família internacional.
Quando casei o ano passado, casei porque estas pessoas queriam que eu casasse para ser feliz. Tinham razão. Foram, de propósito, ter comigo a Las Vegas, aguentaram os 45ºC daquele deserto e foram os melhores padrinhos que alguém pode ter. Também lhes quero mostrar a "minha" Alemanha e eles, sempre prontos a deixar Chicago, disseram logo que sim. Encontramo-nos e os três esperamos pelo marido com quem me casaram e que chegou à Alemanha antes de mim porque queria ver coisas que eu não quero e que me ferem, como ferem todos os alemães. Quando chega, somos um bando de quatro criaturas felizes no reencontro. Bagagens para o carro e seguimos até ao nosso quartel-geral para os próximos cinco dias: Starnberg, uma pequena e pacata cidadezinha nas margens de um lago maravilhoso a sul de Munique.
Ao serão visto o vestido com que me casei na tal capela kitsch em Las Vegas e jantamos os quatro brindando a dois aniversários de casamento coincidentes, o nosso primeiro e o 41º deles.
Cheers! Let love rule!

15 de setembro de 2017

Dia 1: Pousar

Ando há anos a adiar esta viagem. Empurro-a sempre e mais para a distância do futuro não querendo que o futuro chegue porque o sei derradeiro e último. Adio e adio porque me vai doer porque vou reviver, lembrar. Há muitos mortos nesta viagem e todos me doem. Mas também há vivos que me doem porque os amo e porque, no normal rumo da Vida, os irei perder.
Mas devo-me e devo-lhes esta viagem. Além disso, na vida nova que comecei vai para um ano quando disse "I do" numa capela kitsch em Las Vegas, há alguém que me merece que lhe mostre o outro pedaço de mim. Sim, quero. Quero mostrar-lhe o país da língua em que nasci, as pessoas que aí estavam quando nasci e que ajudaram a fazer de mim o que sou hoje, como sou hoje: um híbrido entre o Sul e o Norte. Quero mostrar-lhe o contrário dos estereótipos do povo frio e mal-amado. Quero mostrar-lhe os sítios a que também chamo casa e que me são origem. Quero que conheça "os meus" e que "os meus" o conheçam.
Engraçado, na minha outra vida nunca quis que o outro do meu não-casamento conhecesse a minha metade não-portuguesa. Nunca o levei lá, mesmo quando eram mais os vivos do que os mortos. Mas ainda há tempo. Ainda há vivos e, sobretudo, há o meu querer. O plano era simples: este ano cumprir-se-ia a terceira parte da viagem costa-a-costa aos Estados Unidos. Porém, veio uma nova face política e vieram os 90 anos da Tante Ruth. 90 anos! A Alemanha chama-me e eu vou.
Aterro sózinha em Munique. O meu marido juntar-se-me-á já no país. É rápida a imersão porque eu não venho como turista.
- Wie chic! - Ouço de mim e do meu chapéu de cerimónia usado sem cerimónia assim que chego ao balcão de informações. Pergunto qual o percurso mais rápido até ao Hilton Airport pois aí é o ponto de encontro do encontro que vai começar a viagem. Sorrio. Agradeço o elogio. Recebo a informação e apresso o passo enquanto puxo o trolley que não vem feito para viagens leves.
Cheguei e não me sinto estranha. Se calhar não é uma chegada, é um regresso...

13 de setembro de 2017

Dia 0: Fazer a mala

Nunca consegui viajar leve. O conceito tão alardeado como útil e merecedor do melhor viajante é-me desconhecido. Travel light... Pois sim, claro que não. Preciso empacotar-me para dezoito dias de clima quatro estações. Vai estar frio e chuva e calor e mais ou menos. Levo um chapéu para me proteger do sol e um para me resguardar da chuva. Levo um impermeável de penas e blusas de Verão, sapatos fechados e sandálias, algo para uma saída à noite mais chique e vestidos de passeio. E, claro, um bloco de notas à antiga junto com um tablet híbrido que me ligue ao mundo moderno.
Travel light? Pois sim, claro que não.