Voyage autour de ma chambre, Xavier de Maistre (1794) é talvez a obra que inaugura a tradição literária das viagens imaginárias: uma cela, um preso e as viagens na imaginação. Eu estou a começar agora a viajar no meu quarto. Descubro que não sei nada do espaço onde habito. Quando recebo visitas percebo que não lhes sei mostrar nada deste sítio. Sei que me corre visceralmente nas veias no muito que gosto de aqui viver porque nós sempre aqui vivemos. Mas não o meu nós mais chegado e eu, perdida em horizontes longínquos, sempre ignorei o que me rodeava.
Descobri esta quinta abandonada há coisa de um ou dois anos. O curioso é que fica mesmo ao pé da minha casa e só ontem lá fui. Mais curioso ainda: eu passo por ela todos os dias. Engraçado como os olhos nunca tiveram curiosidades de expansão aqui. Desde que a descobri que me encantei por ela. Gostava de comprá-la. Nem sei porquê. Eu já moro numa casa que, por muito que eu me espraie, não consigo preencher, como é que eu iria morar num casarão destes? É linda. Tem um torreão com um relógio e as águas são forradas de azulejos encimadas por um enorme lobo em cata-vento. A empena de trás também tem uns quatro ou cinco painéis em azulejo. Já tem fendas nas cantarias. Algumas vidraças estão partidas e as portas carcomidas e gretadas. Imagino herdeiros que não se entendem em partilhas ou donos sem capital que sustenha a manutenção de uma coisa destas. Seja como for, dá-me pena.
Passo por ela e digo-lhe que gostava que fosse minha ainda que só em sonhos...

Este é o meu campo num dia de cinza e neblina nos montes. Está calmo... agora.
Pode ter vendavais e água brava. Dá-me um trabalho danado que eu não teria se morasse na cidade. Oiço os trovões no ressoar de paredes de ecos e o vento que silva contra as persianas ou que se abafa roufenho na chaminé da lareira. Mas é o meu pedaço de mundo. Andei afastada muito tempo. Os estudos, as viagens, a profissão, o passado nascido noutro país, a Mãe que aqui morreu e a sepultura do meu não-casamento. Tudo isso me afastou. Tudo isso me fechou gavetas no coração e na mente. Não condizo com o espaço. Sou sempre a Zsa Zsa Gabor e não consigo ser outra coisa que não a Zsa Zsa Gabor. Sei que seria feliz noutro local qualquer mas aqui: aqui estão as minhas umbilicalidades viscerais e isso não se explica, sente-se, como eu senti hoje num dia de cheia que, sem me tocar, me tocou no mais irracional que tenho: home...





