30 de junho de 2019

Gibraltar visto de Espanha

O dia em que estive em Gibraltar estava nublado, pardacento, melancólico, muito diferente do dia em que subo aos montes vizinhos e o observo ao fundo na sua solidão de rocha escarpada e velha. Só assim se tem a real percepção da sua diminuta dimensão no coração de Espanha. Do aglomerado urbano que circunda O Rochedo, apenas uma ínfima fracção é Gibraltar, tudo o resto é Espanha que faz questão de se encostar o máximo que pode à fronteira. Mal se dá por ela. Parece uma portagem em hora de ponta e nada mais, ou um porto onde atracam ferries e se assista ao movimento de gente e carros de um lado para o outro. Olhando para a vastidão espanhola, Gibraltar, e o Rochedo em particular, têm a minúscula e dolorosa dimensão de uma ponta de alfinete ali cravada. Majestoso, O Rochedo domina, na sua altivez, a paisagem envolvente. Não é o promontório mais alto daquelas cercanias mas é singular pelo seu obstinado destaque e o não querer ligar-se à cordilheira que o cerca por todos os lados menos do do mar. Fiquei-lhe com respeito... 

28 de junho de 2019

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Às vezes penso quando é que vou deixar de vir aqui, de me lembrar deste dia, quando o vou esquecer ou fazer dele uma banalidade normal daquelas que nos passam despercebidas. Acho que não o faço por isso seria traír-te, menorizar-te no meu coração, quando menor é tudo o que não és nem nunca foste. O filho que eu teria tido, se fosse vida e não morte o que assinala esta data, seria um adulto na plenitude da maioridade, aquela a que se chegava antes de ela ter descido aos dezoito anos do fim adolescente. Quem seria e o que faria com os seus vinte e um anos. Que vida teria eu tido mãe dessa pessoa? Ao invés, tenho sido filha ferida pela saudade e pela amputação. Nunca o superei, como não o quero superar.
Não é masoquismo esta lembrança, é uma forma de me avivar de ti, Tu que andas sempre presente e te fazes notar a cada instante. A vida seguiu-nos, de uma maneira estranha, é certo, mas seguiu. Hoje temos o que temos, sendo o que somos, órfãos de ti mas gente viva que viveu o que soube e pôde depois daquilo. Vinte e um anos, Mãe. Vinte e um, tenho de repetir para me dar conta do lapso de tempo menos rico e feliz que passou entre aquele dia e hoje. Lembro-me de como pensava que cinco anos eram tantos, depois dez e mais e agora isto, este número com tendência a crescer, enquanto decresce a minha proximidade de ti.
No meio disto tudo sou feliz. Feliz porque te tenho e feliz da sorte que me fez ser-te o que sou. Não me fiz mãe de algum filho que agora fizesse vinte e um anos e estivesse prestes a seguir a sua vida longe de mim. Continuei filha e filha morrerei, como morreria se me tivesse feito mãe como a tua outra filha. É assim a vida, eu venho aqui, um dia estarei aí.
Não se dizer como te amo... Mãe.

26 de junho de 2019

Baía de Cádiz

Associo Cádiz às descobertas espanholas, aos tempos imperiais, a uma época de navegações e rivalidades com Portugal. A localização de Cádiz tem o privilégio e a sorte de lhe dar duas caras, uma virada para um porto abrigado, gigante e sereno, e outra que a projecta para o mar aberto. É uma língua de terra rodeada de água e esse geoestrategismo deu-lhe a história e a importância. Ir a Cádiz obriga a que lhe façamos a circunferência. entremos pelas ruas do casco histórico e apanhemos a marginal nas costas da catedral Sigamos pela marginal que contorna o mar ventoso, continuemos e entremos pela marginal que percorre a serenidade da vasta baía.
As praias ficaram algures na década de 1950, parece-me. Guardam uma nostalgia perdida que não as torna modernas mas sim reminiscentes de esplendores de outrora. Têm também qualquer coisa de magrebino, o edifício de banhos, agora albergue arqueológico meio abandonado, teria enquadramento pleno numa praia marroquina ou tunisina, aqui fica numa descontextualização paradoxal de uma Espanha que, afinal, foi árabe. É neste cadinho de confluências culturais e geográficas que se ergue Cádiz, cidade de amarelos e rosas pálidos em fundos azuis de céu, mar e baía. Esperava, confesso outra monumentalidade, algo imponente como Sevilha ou, mesmo, Salamanca (tão diferente do espírito andaluz) mas Cádiz não é isso. Tem uma catedral de colosso, como convém e como seria expectável, tem igrejas de tamanho tudo menos menor mas falta-lhe o esplendor palaciano. é terra de comércio, de mercadores e marinha e exércitos estacionados, não é um local de grandes portentos cortesãos. Talvez necessite um pouco mais de carinho nos edifícios devolutos ou semi mas, quiçá, talvez seja isso que lhe dá o charme negligenciado...

23 de junho de 2019

Macacos de Gibraltar

Fomos bem avisados que os macacos do Rochedo são atrevidos, impertinentes e totalmente donos do espaço. São conhecidos por "roubarem" os turistas e pela dentada ocasional em gente mais imprevidente. Logo à entrada do teleférico, fotos de dentes aguçados avisam para o perigo de mordeduras. Não vou sem falta de aviso.
São a única colónia de macacos em solo europeu. Macacos de Barbária. Vi os seus primos há muitos anos empoleirados nas coníferas do Atlas marroquino. São iguais, a mesma pelagem densa dourado-acastanhado e avivam-me memórias de uma série menos conhecida, mas minha preferida, do David Attenborough, "O Primeiro Éden: O Mundo Mediterrânico e o Homem". Ao evocar a fauna mediterrânea veio aqui filmar estes macacos isolados e é ao vivo, neste seu habitat, que os venho encontrar. Movem-se com incrível agilidade nos penhascos. Dá-me vertigens vê-los a correr nas escarpas. Não me aproximo muito embora eles se aproximem de mim. Penso que me vão agarrar a carteira e, por isso, não quero cá intimidades. Entram pela cafetaria adentro, remexem em lixos e pacotes. São tudo o que eu pensava que seriam. Deixam-se fotografar mas pedem coisas em troca. São negociantes e mercenários que olham para nós com o desprezo altaneiro que, justificadamente, lhes merecemos. Em suma, mandam em nós e deixam-nos pensar o contrário. tiro-lhes o chapéu!

20 de junho de 2019

Gibraltar

O dia não era exactamente o que eu esperava. Nublado e fresco, não correspondia bem à imagem mental que eu trazia ao chegar ao Rochedo, esse enclave britânico, aguçado que nem uma espinha, no meio de terras andaluzes. Imaginava vir aqui num dia de sol radioso como o são os dias de sol andaluz.
Percebe-se logo porque é que Gibraltar se chama O Rochedo, na maiúscula do nome. É uma rocha imponente que se levanta na paisagem e nada mais. O Rochedo é um pedaço de rocha, ponto. Monumental e solitário, é o paradigma perfeito da definição de enclave. A entrada é feita através da pista do aeroporto. Cada centímetro de terra conta. Há casas na vertigem vertical da rocha, há terra tirada ao mar, tudo é apertado e claustrofóbico. Porém, a vida decorre e Gibraltar lembra-me Miami Beach em ponto micro: os empreendimentos virados para o mar que nos cortam a visão do mar, os habitantes anglo a fazerem o seu jogging, as marcas saxónicas, o inglês inesperado no meio do espanhol. É uma Grã-Bretanha tão ao sul que mais parece americana e os ingleses aqui não parecem viver em pátria sua mas numa espécie de expatriamento. O Brexit aqui foi rechaçado e não imagino o que seja a (re)imposição de fronteiras num território que, por força da sua exiguidade, tem de estar aberto sob pena de colapsar.
Percorre-se num ápice este espaço e, porém, a sensação é de que aqui os britânicos vivem em modo de auto-suficiência. Há aqui hospitais, escolas, jardins, comércio, bancos, colégios, igrejas de diferentes denominações e até uma mesquita. Recentemente, inaugurou-se a universidade de Gibraltar (coitada, que caminho terá de correr até chegar aos rankings da notoriedade e ser levada a sério). Não falta nada apesar de faltar espaço.
Naturalmente, a grande atracção é o topo do Rochedo, o teleférico vertiginoso até lá chegar e os macacos de Barbária que nos esperam ávidos e atrevidos. Mordo as vertigens e subo ao alto, vendo, cada vez mais nitidamente, os contornos do enclave e o horizonte de mar que aponta para África ali tão perto. As nuvens baixas que envolvem o topo dão ao Rochedo um ar melancólico. Penso que, em vez de decepção, tive uma sorte enorme de ver o Rochedo sob esta luz difusa e acinzentada que dá umas fotos bem distintas e diferentes das habituais com que se vende Gibraltar.
À saída, uma fila de carros com uma hora de espera empata o regresso a Espanha. O polícia de fronteira olha para o meu ar incrédulo e diz, sorridente, no humor britânico de que é filho:
- I bet this wasn't on the prospect!
Sim, de facto, isto não está em nenhum panfleto turístico.

15 de junho de 2019

Tarifa

Vem de há muito o desejo de ir ao ponto mais ao sul na Europa continental. Localiza-se em Espanha e é em Tarifa, aquela espécie de península triangular que ajuda a fazer o estreito que separa a Europa de África. Todos os viajantes nutrem sonhos de ir a sítios relacionados com algo único: o ponto mais a oeste, o mais a norte, a maior queda de água, qualquer coisa superlativa. Cá venho, então, finalmente vinda a possibilidade de concretização de uma aspiração viajante.
Sabia que é um local ventoso e surfeiro. Confirmo. Parques e parques de campismo, auto-caravanas, gente alternativa que deve viver de aventuras e estrada. O mar é bonito, orlado de ondas que rebentam brancas porque o vento as bate e espuma. À entrada de Tarifa antiga, uma placa na porta da muralha indica que foi cidade-fiel quando os mouros a queriam e quando deles se livrou. O carro segue vagaroso pelas ruas da cidade, evitando os hippies, os surfistas, os turistas e os imigrantes. É suja, muito suja. As casas decaem num misto de negligência e salitre do clima marítimo. O vento carrega as ruas de areia e os estacionamentos são raridades rarefeitas. Vejo o mar. Não me detenho mais do que cinco minutos, só para sentir que já aqui estive. Não penso regressar e não terei saudades do sítio, talvez sim do momento. Porque é uma viagem e eu amo viajar. Porque estou acompanhada e amo quem me acompanha. De outras coisas não, Tarifa não me acorda a sensação que espoleta a saudade. Vi, está visto. Isto é o ponto mais ao sul da Europa continental e não lhe acho beleza nenhuma a não ser que é o ponto mais ao sul da Europa continental.

12 de junho de 2019

E, claro, a Macarena

Naturalmente que eu não poderia deixar Sevilha sem ir ver a Virgem de Macarena. Tampouco poderia ir embora de um sítio aficionado destes sem ir ver a padroeira dos aficionados, a Virgem de Macarena, a tal que eu pensava também tivesse uma imagem na catedral e devo ter passado por herege tal a blasfémia do meu pensamento audaz. a Virgem de Macarena alguma vez teria uma imagem na catedra? Não. Ela tem toda uma igreja. Só dela e só por ela. Quando chego, a igreja da Macarena está, como todas por estes dias, de portas abertas de par em par e um mar de gente, devota ou só curiosa, lá dentro em enchente que transborda para fora. O andor da santa está pronto para a sua hora de procissão. Decorado com mil velas e desvelos é uma coisa barroca e tão pujante que a santa para mirrar naquela profusão decorada.
- Mira, como parece una niña - oiço a meu lado uma senhora emocionada que prossegue dizendo que a santa é linda e tem uma cara linda, linda como se fosse uma criança de carne, osso e vida.
entro na igreja, misturada com o mar de gente de telemóvel em riste a fotografar a santa maravilhosa. Faço o mesmo mas apenas com a curiosidade sociológica pelo momento que vejo desenrolar-se. Atento os ouvidos para ouvir pedaços de conversas e afirmações relativas à santa. Amam o manto que, pelos vistos, é das coisas mais apreciadas pelas santas em época pascal. Concordo que é toda uma imponência este manto de veludo verde, bordado em relevo a fio de ouro. Que povo assim adorna os seus santos? Que horas e investimentos estarão neste manto e em todos os outros de todas as outras santas de todas as outras igrejas? Dou a volta ao andor-altar em que, solene e hirta, a santa pacienta sob o nosso olhar colectivo. Reparo também nas paredes da igreja, no altar desocupado, nas capelas adjacentes e no fausto, opressivo de tão rico, que decora a casa desta santa, padroeira de toureiros e matadores, de aficionados, de ciganos e dos andaluzes. Esta Virgem é a Nossa Senhora andaluz. Aqui, nesta igreja, melhor chamada basílica, é Nossa Senhora da Esperança Macarena, a Virgem, a deusa em toda a sua glória.

8 de junho de 2019

Preparar as procissões

As ruas estão, como convém, engalanadas para, com respeito, deixarem passar a procissão. Das janelas e varandas caem panos brocados cor de sangue e debruns de ouro. Devem ter um nome específico. Alguns são tão vistosos que estão decorados com palmas e entrançados de alguma coisa semelhante a verga ou palha. Porém, como em Portugal também há o hábito das colchas à janela para receber a procissão, não é isso que me espanta o olhar. O que me aguça a visão é os milhares de cadeiras empilhadas, os espaços reservados para quem se queira sentar a ver as procissões com aqueles andores que pesam toneladas e que se movem à velocidade ínfima de centímetros por minuto. Sim, só mesmo sentada é que uma pessoa consegue ver o desenrolar da procissão. Da minha experiência anterior, uma procissão leva horas a passar, horas a cobrir uns poucos de metros. As ruas seguem-se umas às outras com cadeiras e cadeiras, empilhadas umas, já dispostas outras, e eu imagino o serpentear longo e lento da procissão tal anaconda. Admiro a fé destas gentes.

5 de junho de 2019

Esta coisa das procissões

Foi há dois anos em Salamanca que, pela primeira vez, vi uma procissão espanhola de Semana Santa. Tinha acabado de deixar as coisas no hotel e ia, curiosa e desperta, ver o que a cidade tinha para oferecer a alguém recém-chegado. Era aquele passeio de reconhecimento que fazemos quando chegamos a um local novo e todos os nossos sentidos são, e estão, abertos para a novidade. Ao aproximar-me das imediações da catedral, povo e mais povo na rua. Caminho mais um pouco e dou de caras com o que, sinceramente, me pareceu a fonte de inspiração dos robes malfadados do Ku Klux Klan. Palavra de honra que tomei susto. Eram, afinal, os pagadores de promessas e aqueles devotos que assim queriam ir na sua fé e respeito pela solenidade da morte do Cristo. Achei, em comparação, as nossas lusas procissões eventos mais felizes e ligeiros, como se a fé do Catolicismo português fosse menos suplicante e sofredora do que a espanhola.
Dois anos depois, estou no centro de Sevilha em plena Semana Santa. O mesmo fervor da angústia pelo Cristo mortificado e a mortificação por via da procissão, via-sacra de expiação e dor. Novamente aqueles capuzes e aqueles robes que me assomam à mente imagens de horror do outro lado atlântico. Respeito estas manifestações de fé. Quem sou eu para dizer seja o que for? Vejo a procissão com olhos de turista, ou talvez de viajante que pensa em milhentas coisas acordadas por estas imagens. Vejo, penso e demito-me de opinar.

1 de junho de 2019

Nem sei como escapei

Sendo um edifício circular, a Maestranza vê-se no plano "à volta" e foi ao dar a volta à praça que não sei como escapei ilesa das coincidências acidentais que ao pé de mim ocorreram.
Sevilha é como a Itália: motas, motoretas, vespas, motocicletas e o diabo a sete em duas rodas. Andando eu de nariz para o ar nas costas da praça de toiros e á procura da dita, oiço atrás de mim uma queda com som metálico, raspar de coisa pelo alcatrão e ais humanos. Percebi o acidente atrás de mim pelo som. Pelo som inquietei-me por o arrastamento que ouvia não parar. Pensei que viesse para cima de mim. Apressei o passo e só metros adiante, olhando para trás, confirmei a moto caída com os seus dois ocupantes. O que, nesse instante, dei conta foi como as pessoas estavam a olhar para mim em pasmo pois, pelos vistos, não se vislumbra como é que eu não fui colhida pelo arrasto da mota caída.
Mal refeita do susto e após me distrair no interior da Maestranza a ver as portas rubras de sol e sombra, eis que me vou embora. À frente dos olhos passa-me uma moto que, ao curvar no semáforo onde eu estava parada à espera da minha luz, cai no chão, jogando de arremesso o seu motorizado condutor. Em escassos minutos de intervalo, livrei-me de infelizes acasos, infortúnios súbitos que me teriam estragado Sevilha. O que posso dizer? Obrigada à qualquer sorte benfazeja que ali por mim esteve e cuidado em Sevilha que as motos são um perigo.